Rituais são importantes, em especial rituais de luto. Mas Laura nunca que devia ter acendido a vela.
Pois é. Morreu uma grande amiga, Ilana. Como escrevi num texto em homenagem a ela, eu gostava (gosto) muito de Ilana. “De seu nome lindo, lindo, que às vezes eu afrancesava, Ilaná. De seu sorriso. De seu bom humor escrachado e inabalável. (…). De seu vocabulário único, pontilhado de palavras francesas e inglesas, algumas das quais, acho, criadas por ela – fuckingshit, por exemplo”.
Muita gente sentia a mesma coisa. Então, surgiu a ideia de improvisar uma praça fake, “só para os darlings”, a praça da Ilana. O suporte material foi a praça Roosevelt, numa tarde de domingo. O ponto de encontro, um bar, claro.
Quando cheguei, pouco antes das 5, o pessoal já havia embarcado para Bagdá. Ainda não estava lá, mas faltava pouco. Os brindes a Ilana se sucediam, acompanhados de sonoros fuckingshit! Fui apresentado ao grupo como “o escritor”, e recebi elogios (de bêbados, mas sempre é alguma coisa) por um dos textos de que ela foi protagonista.
Uma das animadoras do evento era Laura, parceira de crimes da homenageada. Entre um fuckingshit e outro, ela passou a distribuir doses de vodca, veneno predileto da amiga. Também mostrou uma vela que iria acender em sua memória. Jorge, um cara que, aparentemente, era chegado em umbanda, murmurou baixinho:
– Ela está na vibração, vai dar chabu.
Eu estava junto a ele, ouvi e concordei, em silêncio.
A despedida começou pouco depois das 6. Foram colados cartazes de “praça da Ilana” em vários pontos da praça Roosevelt. Depois, numa roda, cada amigo relatou um episódio estrelado por ela. Alguns escabrosos, todos divertidos. Foi assim que eu soube que os amigos de seus três filhos a chamavam de “mamãe trouble” – um nome bem sugestivo. Fui um dos poucos a não falar, já havia entregue meus bois de reisado por meio de contos. E sucediam-se as palmas, os “Viva Ilana”, os “Fora Bozo” e, em especial, os Darling e os Fuckingshit, marcas registradas da atleta.
A cerimônia do adeus não era partilhada apenas pelos ilanistas. Ao redor havia elementos da fauna da praça Roosevelt – bêbados e/ou noias, mendigos e/ou moradores de rua – que, aparentemente, estavam achando um barato ver um bando de idosos (a grande maioria dos presentes), bêbados ou quase, bater palmas, falar coisas incompreensíveis e colar, desajeitadamente, cartazes nas paredes e placas da praça. Eles se divertiam mas, na roda de amigos, a tensão psíquica aumentava. O ritual de despedida ia chegando ao fim.
Foi então que Laura acendeu a vela. E aí deu ruim.
Um segundo depois, um bêbado/noia/mendigo/morador de rua deu um berro: Darling, fuckingshit!
As chances de ele pronunciar corretamente, em inglês, as expressões prediletas de Ilana eram zero. Jorge, que sabia das coisas, aproximou-se do cara, abraçou-o respeitosamente três vezes, no estilo da umbanda, e depois o sacudiu forte, enquanto dizia: “Usa meu corpo, amiga!”.
A passagem foi imediata. Enquanto o bêbado/noia/mendigo/morador de rua coçava a cabeça, sem entender pissirongas, Jorge/Ilana aproximou-se com um sorriso malicioso de Laura, abraçou-a três vezes e deu-lhe um selinho. Houve nova troca de cavalos; Jorge respirou fundo, para se recompor, enquanto Laura/Ivana percorria a roda, despedindo-se dos amigos. Ao som de darlings e fuckingshits, a incorporada e a médium abraçaram cada amigo ou amiga e beijaram-lhes os lábios, que nenhuma das duas era mulher de beijinho na bochecha. No final, com um sorriso para todos, Ilana mudou de plano; Laura foi amparada antes de cair no chão.
Os outros, não sei. Cada um foi embora em silêncio, depois de presenciar/ vivenciar tudo aquilo. Quanto a mim, me senti privilegiado por ter assistido ao despontar de uma encantada. Jorge Amado, em Pastores da Noite, fala em Jesuíno Galo Doido, encantado, “pequeno deus do povo da Bahia”. Neste conto, saúdo Ilana Mamãe Trouble, encantada, pequena deusa de um bando de idosos encucados paulistanos. Uma encantada encantadora, que vai descer sempre pela esquerda e ferrar os bolsomínions, para compensar o voto que Lula perdeu com a sua passagem.