Dias atrás, pensei haver publicado “Não dá para tirar férias enquanto é preciso untar a forma” no Substack, mas a postagem saiu sem o conteúdo.
Uma prova de que a mente, quando quer, para, e não há agenda que a faça obrigação.
E não é que as miniférias realmente aconteceram? A forma ficou ali, aguardando o trabalho das mãos.
Escrever dói.
da arte de acontecer
doer corroer es cor rer
Quando criança, essa era uma cena comum na casa dos meus avós maternos: o forno à lenha estalando, enquanto a grande mesa de madeira parecia envolvida pelas mãos da minha vó.
Em dias mais tranquilos, a arte se multiplicava em outros laços: eram os braços de minha mãe, tias e primas.
Lembro-me nitidamente de desenformar muitos biscoitos de nata e cuca.
Mas o que mais me fascinava naquele tempo era o riso e a conversa solta, que germinavam no estado contemplativo das mulheres.
Era uma tradição familiar de imigrantes alemães em terras mineiras, reminiscência da colônia alemã em Juiz de Fora.
À medida em que eu crescia, re/conhecia outras mesas, origens e tradições. Era importante sair da colônia.
Sair da ilha para ver a ilha (O Conto da Ilha Desconhecida, Saramago).
Precisei sair da ilha para enxergar outras ilhas, seus mares e os continentes que existem nas gentes.
Foi necessário sair da ilha para entender-me ilhote, arquipélago, balsa que deságua em terra e bruxa à deriva.
Mas, sempre ao redor de uma mesa, vi bocas ávidas por assento. E, nas rodas, olhos sedentos de encontro.
Nesses patéticos tempos da solidão cibernética e da homogeneização do pensamento, sinto falta da roda e do pão.
Quem me dera envolver-me em assombros, sem a necessidade do aparecimento.
Cultivar horizontalidade e acolhimento.
Tenho saudade de pessoas reais. Desprendidas. Apressadas em silêncio.
Tenho ciência de que, lá, no suor do forno e nas mãos calejadas da lenha, minha vó, mãe de tantos sonhos e carente dos seus, também se sentiu só.
Como também sei que ela se nutriu em nós a esperança do encanto e do direito de desencantar-se, dádivas de, pelo mundo afora, afastadas das convenções que nos atiraram, encontrar a própria forma e, por que não, o espanto.
Para viver bem, uma dose de espanto se faz necessária.
Aquele ritual, sereno e misterioso, ensinou-me uma das primeiras imensidões da sabedoria: enquanto houver forma para untar, haverá partilha.
Sonha a poesia para os dias vindouros: a descolonização do outro, a multiplicação do diverso e o verdadeiro re/encontro.
enquanto
há forma
para untar,
há partilha
embora haja
forma
para untar,
haverá partilha
quando houver
mesa
para partilhar,
haverá encontro.
Tenho saudade de pessoas reais.
…
mateiro mineiro
Sob a janela
o pássaro preto
adormece
para na madrugada
compor ausências
que me despertam.
…………………
(Poema de Sarah Munck, extraído de seu e-book Digressões em meia-volta, 2022).