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Escritor de pesadelos recebe visitas e tomba por terra, morto

Samuel escrevia contos e poemas de terror. Todo pimpão, via-se como um novo Lovecraft, um Edgar Allan Poe redivivo, um Bram Stoker tupiniquim, um Stephen King brazuca.

Mas não era. Não que, a seus olhos, tivesse menos talento que os autores acima, criadores de clássicos góticos e de terror como O chamado de Cthulhu, A máscara da morte rubra, Drácula e O iluminado, respectivamente. O problema é que, num país tropical marcado por uma enorme desigualdade, os monstros são de outro tipo e o ambiente – temperatura, fauna e flora – não ajudam.

Pense-se por exemplo no célebre poema O corvo, de Edgar Allan Poe. Nele, o pássaro soturno repete várias vezes “Nunca mais”. Samuel pensou em abrasileirar o poema, substituindo o corvo por um papagaio, mas desistiu: a maldita ave só ia dizer currupaco – ou então algo como “nunca mais, seu corno, fio de uma égua.”

Outro exemplo: o poema Annabel Lee, também de Poe. A heroína morre enregelada pelos ventos. Só que Samuca morava em Cuiabá, quente pra dedéu…

Sem falar na linguagem dos textos. O conde Drácula e seus descendentes vampirescos falam como aristocratas ingleses porque a Londres vitoriana, no século XIX, era a capital gótica do mundo civilizado. Mas o Brasil é grande, com uma porrada de sotaques…Basta pensar no que diriam um vampiro cearense e um coleguinha gaúcho para suas presas. Comecemos pelo nordestino:

– Mulé, vou chupar teu sangue. Gosto demais!

Agora o gaúcho:

– Bah, guria, te aprochega. Vou chupar o sangue do pingo, do cusco, da china, da prenda e depois o teu. Me espera, tchê.

Nem a mais imbecil das moças do Centro de Tradições Gaúchas obedeceria. Capaz!

Então, o autor tupiniquim fazia o que podia. Vestia-se todo de preto, no melhor estilo gótico, escrevia no que imaginava ser um misto de paulistês e carioquês (não era, escrevia num cuiabanês metido a besta) e tentava dar cor local a histórias de terror. Às vezes conseguia outras não. Por exemplo, escreveu O barril de cachaça, mas não ousou publicá-lo, era um plágio evidente de O barril de amontillado, de Poe. Também colocou o saci e o curupira em visita a humanos incautos, inspirando-se em O que sussurrava nas trevas, de Lovecraft. Mas ficou bobinho, os monstros lovecraftianos eram muito mais aterradores.

Enquanto Samuel prosseguia em sua árdua tarefa de abrasileirar o gênero terror, esperando que um dia chovesse na sua horta – isto é, alcançasse renome literário e vendesse milhares de livros – realizava-se, em alguma dimensão paralela, mais um Encontro de Monstros Literários. A entidade pavorosa à frente da Comissão de Incentivo a Novos Autores apresentou seu relatório:

– …e temos ainda o caso de um brasileiro, Samuel dos Santos. Ele tenta dar uma ambientação brasileira a contos góticos e de terror, mas está levando uma surra. Acho que devíamos ajudá-lo.

– Ajudar como? – perguntou um vampiro draculesco. – No Brasil não há castelos para o conde Vlad, eu e meus irmãozinhos morarmos.

– E são raríssimas as noites de nevoeiro cerrado, o cenário ideal para meus crimes – acrescentou o senhor Hyde, um dos protagonistas de O médico e o Monstro, obra-prima do escocês Robert Louis Stevenson.

– Confrades monstruosos, somos todos cavalheiros, tenham calma – cortou o dirigente. – Afinal, ajudamos Stevenson, Lovecraft, Poe, Stoker e King no início de suas carreiras; nos mostramos a eles, que depois nos representaram em seus textos. Propomos que façamos o mesmo com esse escritor sul-americano

Os monstros literários resmungaram mas acabaram concordando.

E foi assim que, numa noite quente de Cuiabá, Samuel dava os últimos retoques num matrinxã de uns 60 centímetros, que serviria com arroz de pequi. O peixe exalava um aroma delicioso, o acompanhamento também. Satisfeito, o escritor contemplou sua obra-prima culinária quando ouviu tocar a campainha.

“Devem ser meus amigos”, pensou. “Chegaram mais cedo, mas está tudo pronto”.

Foi abrir a porta, e deparou-se com cinco seres de pesadelo.

Olhou-os sem acreditar no que via – mas aí teve de suportar o insuportável.

Os monstros olharam em sua direção e seus rostos (?) se retorceram.

“Deuses, estão tentando sorrir para mim!”. E caiu por terra.

Desapontadas, as entidades tentaram acordá-lo, mas não conseguiram. Deram de ombros – as duas que tinham ombros – e foram embora.

Meia-hora depois, quando os amigos de Samuel chegaram, encontraram-no caído por terra, morto, com uma expressão de pavor absoluto estampada no rosto.

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