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No hospício

Esdras e carcereiro mostram lado emotivo de Marisa

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Reprodução/Pixnio

Toda vez que descia aquela ladeira, Marisa já sentia o cheiro de confusão. Psiquiatra de profissão, atendia aquela ala do presídio no Gama, onde vivia uma enorme gama de seres humanos com históricos dos mais diversos. Para a maioria da população livre das grades, no entanto, poderiam ser vistos como doidos varridos.

Apesar da quase uma década lidando com aqueles de onde a sanidade havia sido varrida por completo, Marisa ainda assim se surpreendia. Aliás, um dos casos mais intrigantes dos últimos tempos era o de Esdras, um homem de seus quase 40 anos, mirrado como um adolescente desnutrido. Para completar o quadro, ele sofria de paralisia de metade do corpo, o que lhe conferiam braço e perna ainda mais finos do lado direito.

O detento andava arrastando a perna direita por onde ia. Quanto ao braço paralisado, praticamente nenhum movimento. Tombado para baixo, nem conseguia mexer os dedos, quanto mais fechar o punho.

A voz, quase infantil, combinava com os tristes olhos de menino abandonado. Sempre fitando os próprios pés, Esdras não conseguia encarar as pessoas, como se uma timidez lhe tomasse por inteiro. Todavia, não se iludam com tal aparência. Era um assassino dos mais ardilosos, a despeito de tamanha fragilidade.

– Por que você tentou matar seu pai?

– Não sei, doutora. De vez em quando uma coisa vem.

– Que coisa, Esdras?

– Não sei. Simplesmente vem.

Esdras havia sido preso há pouco mais de um mês, quando esfaqueou seu pai adotivo, o velho Odorico. Apesar das três facadas, o homem sobreviveu. Por milagre, disseram os médicos. Uma das punhaladas atingiu um dos pulmões. Odorico cuspiu sangue pela boca antes de ser socorrido.

Na delegacia, Esdras se manteve calado. Não que quisesse manter em segredo a motivação do seu crime. Ele simplesmente não sabia. Estava atônito tanto ou quase tanto como todos ao seu redor.

O criminoso foi colocado junto a outros presos numa cela. Num canto, todo encolhido, mantinha os grandes olhos castanhos direcionados para os próprios pés. Os outros detentos, três para ser preciso, acabaram adormecendo sem ligar para o agora colega. Ledo engano. Foram despertados pela fúria de Esdras, que desferia vários socos na cabeça de um deles. Murros com a única mão que valia a pena ainda manter naquele corpo frágil, a esquerda.

Os dois outros presos começaram a espancar Esdras, enquanto o terceiro vomitava os bofes. Os policiais de plantão agiram rápido e conseguiram evitar que o maluco fosse morto ali mesmo. Separaram-no dos demais.

No dia seguinte, enquanto era levado para a audiência de custódia, eis que Esdras quase arrancou um pedaço da orelha de um dos presos. Cheio de dor, a vítima gritou por socorro, mesmo sendo muito mais forte que Esdras. Ninguém acreditava que aquele aleijado pudesse ter feito aquilo.

Marisa, depois de fazer suas anotações, se despediu do seu mais novo paciente. Esdras, com os olhos voltados para baixo, mal conseguiu balbuciar algo. No entanto, assim que o carcereiro apagou a luz da cela, algo chamou a atenção da psiquiatra.

– O senhor vai me deixar no escuro?

– Por quê? Você tem medo de escuro?

– Tenho.

– Pode ficar tranquilo, Esdras. Nada de mal vai lhe acontecer. Vou ficar aqui perto para te proteger.

Marisa, depois de quase dez anos trabalhando na ala psiquiátrica do presídio, ficou surpresa não com o medo de escuro do paciente, mas com a bondade inesperada do carcereiro.

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