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Elias

Esquerda ou direita… sem convicção ninguém cai nessa, irmão

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Gosto muito de uma historinha católica de humor negro. Um alpinista caiu de uma alta montanha e pediu socorro aos céus:

– Valhei-me, São Francisco!

Uma enorme mão materializou-se embaixo dele, impedindo-lhe a queda. Uma voz ressoou:

– De Paula ou de Assis?

Ele escolheu, a mão desapareceu e ele se estabacou no chão.

Agora, o conto.

Elias era famoso por suas más escolhas. Começara na infância, quando aos quatro anos, resolvera se equilibrar na borda do laguinho da praça central de Nova Friburgo, sua cidade natal. O laguinho tinha uns 200 m2, se tanto; a seu redor havia um planeta de 510 072 000 km2. Pois bem, o garoto esnobou a superfície terrestre e escolheu descer em pleno laguinho – ou escorregou e caiu, tanto faz –, ficando com a roupa de domingo encharcada e toda suja de limo. Resultado, beliscões da mãe enquanto o levava para casa, com a promessa, murmurada entre os dentes, de lhe aplicar uma sova daquelas.

Nos anos seguintes, Elias confirmou sua rara capacidade de fazer sempre a escolha errada, no momento errado. Jamais ganhou no bingo, na loteria, numa singela rifa escolar. Teve uma vida amorosa pra lá de medíocre.

Casou duas vezes, fracassou nas duas; detestava seu emprego, que ainda por cima pagava mal. Em resumo, solitário e sem grana, via sua vida empobrecer a olhos vistos.

Mas havia um aspecto de sua existência de que Elias não abria mão: sua visão de mundo política. Ele era de esquerda e se orgulhava disso. No fundo, porém, sentia uma pontinha de remorso por haver apoiado
entusiasticamente Dilma em 2016, na luta contra o impeachment. “Será que fui eu que ferrei a presidenta?”, perguntava-se rolando na cama, sem dormir”. “Claro que não!”, respondia sempre. “Foram os parlamentares conservadores, a grande imprensa, setores das classes médias urbanas que já estavam guinando para a direita”. Repetir esse mantra o tranquilizava, mas no fundo, no seu subconsciente, permanecia a dúvida.

Então vieram o governo do Bozo e a pandemia, que limitou Elias a uma militância virtual. Os anos passaram, e chegou 2022, ano eleitoral de uma disputa pesadíssima. Certa manhã de março, ele pulou da cama com uma certeza inabalável:

– Se eu apoiar o Lula, ele vai perder!

Pensou longamente no que fazer, e decidiu aderir aos bolsomínions e ferrar o Bozo. Passou a escrever barbaridades em suas redes sociais, contra a vacina, o mimimi feminista; a curtir quem escrevia asneiras semelhantes e a pedir amizade aos trogloditas da direita. Recebia vídeos fake a dar com o pau, jurava que ia compartilhar com centenas de parças e, claro, não mandava pra ninguém.

Os meses passaram e, seja pela mobilização dos setores democráticos unidos em torno de Lula, seja pela presença de Elias, o pé-frio, em meio ao gado, Bozo levou uma surra de criar bicho.

Horas depois, Elias recebeu uma mensagem convocando-o para uma reunião.

Escolheu ir, diria que estava tão acabrunhado pela derrota que iria se afastar da militância política. Mas nem teve tempo de vender esse peixe: mal entrou na casa do chefe direitalha, mostraram-lhe uma foto de um homem cumprimentando Dilma, enquanto empunhava um cartaz com a
inscrição “Nossa eterna presidenta”. Era ele.

– É você, né, seu fiodeumaégua? – rosnou o dono da casa.

Elias tinha algumas escolhas diante de si. Podia dizer que era uma foto fake, montagem produzida pelos petralhas para desmoralizá-lo; podia dizer que conhecia o cara da foto, era o Edinardo, um primo
parecidíssimo com ele, comuna sem vergonha, a ovelha negra da família; podia sair correndo. No entanto, seguindo seu desastroso carma, fez a pior escolha possível.

– É, já fui de esquerda. Mas mudei…

Nem completou a frase. Os bolsomínions caíram de porrada no infiltrado, deixando-o sem sentidos. Foi levado de ambulância para um hospital, mas tinha um problema cardíaco congênito e não resistiu.

Hoje, Elias está no céu, veste um camisolão, dedilha uma harpa e tem no rosto uma expressão pra lá de emburrada.

Compreensível, ele era ateu.

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