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Esquerda precisa se unir para desafio de voltar ao combate

“O socialismo comprometido com a democracia burguesa ainda é uma forma de reprodução do sistema capitalista de poder” – Florestan Fernandes.

Em entrevista à revista Casa de las Americas (Cuba), no início de 1990, Darcy Ribeiro fala-nos do desalento que naqueles idos se aplacava sobre os movimentos populares e socialistas: a esquerda latino-americana desanimada, a esquerda mundial acovardada. Naquela altura, no Brasil, sob o pálio da Nova República, vivíamos a experiência dos governos neoliberais, vencidos os sonhos libertários da luta contra a ditadura. Conquistáramos a democracia burguesa, numa guerra que conheceu o ferro e o fogo, deixando cicatrizes irremovíveis, mas estávamos ainda mais distantes da reforma social, razão de tudo.

As consabidas dificuldades de compreender o processo histórico paralisam o movimento social e seus pretensos condutores se quedam, atônitos, sem saber o que fazer. Os céus sem nuvem e sem estrelas não sugerem caminhos. Por não haver entendido o significado da “revolução brasileira”, não tivemos condições de sustentar o governo Jango; por não havermos compreendido a natureza do golpe de 1964, ficamos impossibilitados de travar o combate que as condições históricas indicavam. Após 21 anos de ditadura, os militares preestabelecem as condições de descida da rampa do Planalto, e o regime da caserna, decaído, se projeta no regime da redemocratização.

O desânimo que afligia a geração dos anos 90 alcançava o observador privilegiado, que se descobre, ele também, desamparado da esperança utópica, um projeto de ser, aquele valor que separa o guerreiro do homem medíocre e opera como fonte de vida histórica: “Sendo como sou um homem de esquerda, me dói este sentimento desesperançado que encontro aonde vou”. Inclusive entre os jovens, que não são mais os que o antropólogo conheceu nas barricas parisienses de maio de 68.

Darcy não cogita do pano de fundo histórico da tristeza e da apatia da alma ocidental na última década do século: o desmoronamento da mais bela utopia humanista que o homem já concebera, despedaçada nos escombros daquilo que se convencionou denominar de “socialismo real”. O mundo dos sonhos cedia espaço à desesperança.

Despida de desafios, sem alternativas por construir, e plena de dúvidas e de interrogações, a política fracassara. Era o momento azado de balanços políticos e existenciais sobre os 74 anos da revolução russa, posta na soleira da história. Encerrava-se, em dezembro de 1991, com um suicídio burocrático, uma longa e dolorosa saga de lutas por transformação social. Encerravam-se as expectativas ensejadas pela vitória sobre o fascismo na Segunda Guerra Mundial, mas a sociedade solidária e a paz continuavam distantes.

Diante de uma humanidade perplexa, jazia, sem luta, sem resistência, o campo soviético que anunciara ao mundo a alvorada: promessa de contenção do imperialismo e esperança de construção de uma nova ordem mundial, livre do colonialismo e do imperialismo. Sua queda representava a derrota de todos os revolucionários do mundo naquele século, e anunciava a vitória final e definitiva do capitalismo.

A esquerda, em todo o mundo, despreparada para a orfandade inesperada, se quedava sem espólio, e caminhava claudicante à procura de um ponto de apoio, fosse de recuo, fosse a imaginação de um novo sonho (sem o que é impossível lutar), fosse a expectativa de recuperação de seus valores ameaçados. A URSS, a Roma dos comunistas e socialistas, optara pepela autoimolação e seu fracasso abria o cenário para a onipotência estadunidense. O fim da história era o decreto que se abatia sobre as grandes massas trabalhadoras, condenadas a uma diáspora ideológica.

Findava-se a era das utopias.

A debacle soviética (e com ela o fim de uma ortodoxia doutrinário-ideológica) havia enterrado o projeto do “socialismo real” (o único que se pensava possível) e punha em questão a força libertária do marxismo-leninismo, nada obstante ainda estivesse presente a dedicação dos comunistas e socialistas na luta por um mundo que antes parecia caminhar para uma sociedade, senão igualitária, certamente menos iníqua em comparação àquela que herdávamos. Já seria uma vitória havermos chegado ao final do século XX vendo à distância a ameaça do armagedon nuclear, e os comunistas se identificavam, em todo o mundo, na defesa da paz. Nem tudo era perda, por certo, mas a derrota do modelo burocrático abalara, em todo o mundo, o projeto socialista, demolindo uma a uma suas praças, a começar pela batalha ideológica, trazendo à cena a crise dos partidos.

Os partidos comunistas e socialistas pagariam o preço da autodissolução, e o ponto de incisão foram os grandes partidos comunistas da Itália e da França. Cada um, segundo sua natureza e sua história, em processo que percorreu o mundo, conheceu a partir dali sua decadência. E dela não se viu livre a América Latina. Ficara o que Darcy identificava como “a falta de ter em que acreditar, até entre gente jovem”.

O fim das organizações implicou o recesso da luta ideológica, deixando com a direita o monopólio da fala. A dificuldade de compreender o processo histórico determinou tanto o recesso do trabalho organizativo quanto o dever da educação das massas, atraídas por apelos de integração no sistema, induzida pelo capitalismo monopolista que avançava mesmo na periferia subdesenvolvida.

Darcy, que foi poupado de conhecer a história do presente (seu ponto de observação era a França mirando para o então terceiro mundo) via parcelas ponderáveis de nossas esquerdas, deprimidas por algo como uma crise existencial coletiva, darem um passo atrás “avassaladas frente a uma direita agressiva, soberba e até insolente”.

No nosso século, por força de inumeráveis fatores, a revolução social se transmuda em reformismo, e, em muitos casos, a “direita agressiva” ameaça a civilização, impondo à esquerda — voltamos ao Brasil– o compromisso de defender a ordem, depois da traição dos liberais, da renúncia política da social-democracia paulista e do trânsito da direita dita civilizada para uma extrema-direita de índole fascista.

A contingência impôs à esquerda brasileira – já sem aquela influência exercida pelos quadros comunistas no passado remoto – o dever presente de defender a institucionalidade democrática, ante as ameaças do projeto protofascista que, derrotado nas urnas em 2022, permanece ativo, construindo essa contradição por resolver: o conformismo da esquerda, seu espanto e s apatia (que tanto incomodavam Darcy), e o inconformismo de uma “direita agressiva, soberba e até insolente”, presente e majoritária na governança do mundo.

O quadro de hoje, portanto, parece mais grave do que aquele que o autor de O povo brasileiro analisa. Ele pode ser reduzido ao avanço da direita em todo o mundo e em todos os campos da vida social, pois se expressa tanto do ponto de vista ideológico quanto no campo militar e tecnológico, alimenta conflitos, fomenta guerras e realinhamentos geopolíticos-estratégicos, na preparação do conflito com a Eurásia, na disputa inevitável pela hegemonia do mundo, opondo principalmente EUA e China, ao fim e ao cabo um conflito intercapitalista, o que, todavia, não pode esconder o papel progressista desempenhado presentemente pela República fundada por Mao Zedong.

Os EUA de hoje, uma presa agressiva da díade Trump-Biden, oscilam entre a direita do Partido Democrata e a ultradireita do Partido Republicano, representações da polarização político-social do maior arsenal atômico do mundo. É desse Estado belicoso, expressão maior do grande capital na crise aguda em que se que encontra o modo de produção capitalista, que a humanidade vê crescer a hegemonia econômico-militar sobre o mundo, na busca da unipolaridade.

Tanto quanto seu arsenal bélico funcionam os mecanismos de manipulação de “corações e mentes”: os marines são precedidos pela batalha ideológica e o controle das fontes de informação. A grande imprensa brasileira, servidora da visão de mundo do Departamento de Estado, é exemplo paradigmático de nossa dependência, que é a dependência ideológica do chamado “Ocidente”, que nada nos pode oferecer, senão consolidar nosso papel “de proletariado externo das potências cêntricas”, como observou Darcy.

Variados foram os títulos da irrealizada revolução brasileira: nacional libertadora (quando a “questão nacional” se sobrepunha à “questão social”), democrático burguesa, antifeudal e anti-imperialista etc. Pensou-se até, nos idos dos anos 1960, em revolução socialista por dentro do regime, sonho esmagado pelos militares em 1964. Intentamos marchas sertão adentro e, por não conhecer o processo histórico, que não concilia com transplantes revolucionários, chegamos mesmo a uma tentativa de putsch, o erro crasso de 1935, para em seguida renunciarmos à imaginação revolucionária e abraçarmos a luta nacionalista. Optamos, por fim, pela composição com a institucionalidade, pelo que a estratégia revolucionária foi substituída pela tática da composição política, mediante a hipótese de conquista de governos de centro-esquerda para fazer por dentro do Estado burguês, e no capitalismo, a reforma social possível.

O sucesso político da campanha de 1989 disse às esquerdas brasileiras, e disse principalmente ao PT, a organização hegemônica, que já era possível a conquista do governo mediante o processo eleitoral. Dessa avaliação derivaria nossa política coletiva desde aquele então: a necessidade de compor com o establishment. Sua execução, porém, exigiu a renúncia a qualquer proposta socialista e impôs a opção social-democrata de governo, que tanto combatêramos. Ao fim e ao cabo, a opção tática de conquista do governo – limites aos sonhos e apego às composições – impôs sérias limitações estratégicas.

A esquerda, para vencer as eleições, haveria de caminhar ao centro e, para governar, compor com a direita. Os melhores programas partidários ou de governo teriam de passar pela destilaria da realpolitik. Assim, o PT deixou de falar em socialismo, a esquerda deixou de denunciar a sociedade de classes, a organização popular foi relegada às traças, a formação ideológica das massas populares e sindicais esquecida. E sobre a revolução abateu-se silêncio sepulcral. O socialismo, no projeto de um partido proletário revolucionário, foi remetido às calendas gregas, dizia-me há pouco, sem qualquer eiva de crítica, um amigo dirigente comunista.

Hoje, no governo, trabalhamos com afinco e sinceridade para tornar a sociedade de classes suportável pelas grandes massas.

Como observa Florestan Fernandes, escrevendo sobre esse tempo “a revolução socialista perdeu a sua poesia e o advento do comunismo passou a ser negligenciado” (Contra o socialismo legalista), esquecidas nossas lideranças de que a alternativa socialista não cai do céu, não banha as flores como o orvalho, nem rega a terra como a chuva. O socialismo, ensina o mestre de todos nós, que acabo de citar, é o fruto do confronto direto de forças irremediavelmente antagônicas, o tour de force do embate com a vida concreta no mundo real: o trabalho como mercadoria, a exploração da mais-valia como fundamento do lucro, a aceleração da acumulação capitalista premiando o rentismo e a especulação, enfim a luta de classes, subsumida, hoje, pela integração na institucionalidade burguesa como aspiração política.

É o Brasil da industrialização da segunda metade do século passado, o capitalismo monopolista que se segue ao fim da Segunda Guerra Mundial, a vitória dos EUA na contenda da Guerra Fria e, seu corolário, a associação das burguesias nacionais com o imperialismo. E que chega à atualidade reproduzindo o início da história: somos país pobre nos subúrbios do capitalismo dependente.

Este, o quadro de hoje, quando precisamos salvar, com base no apoio popular, negligenciado, o governo do presidente Lula, minado pela coabitação com o Centrão e a direita, fragilizado em face de sua minoria em um Congresso reacionário e chantagista, minado em suas bases pela resistência da caserna, pelo agronegócio predador, irmão gêmeo dos grileiros e garimpeiros que destroem o meio ambiente e o habitat dos povos originários.

*Ministro da Ciência e Tecnologia no primeiro governo Lula

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