Uma das declarações mais conhecidas e repetidas dentro e fora do país completou 59 neste 2022. Narra a história que, entre fevereiro e março de 1963, durante um incidente diplomático entre Brasil e França relativo à pesca de lagostas, houve um pequeno estremecimento nas relações entre os dois países e popularizou-se a frase O Brasil não é um país sério, atribuída equivocadamente ao general Charles De Gaulle, então presidente francês. O equívoco é nebuloso, mas o diplomata Carlos Alves de Souza, à época embaixador do Brasil na França, se assumiu como autor da expressão em 1979. A forma como foi dita e as razões pelas quais chegaram a De Gaulle são irrelevantes.
Relevante é que ela não foi inventada e que até hoje faz parte do anedotário político nacional como verdade quase absoluta. Às vezes, lembra um autorretrato sem moldura da maioria dos brasileiros, principalmente daqueles que se orgulham das ofensas a quem lhes incomodam. É o caso da briguinha de quinta série entre o presidente da República e o Poder Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal. Briguinha porque todos sabem de quem é a última palavra sobre leis. Está na Constituição. Será que ainda existem patriotas que acham bonito ser feio? Claro que a feiura em questão é metafórica, mas se aplica perfeitamente aos apoiadores de um governante que não admite ser contrariado.
Mesmo entre os poderosos que nos recebem como favor, nossa imagem é a pior de todos os tempos. É a imagem de republiqueta de bananas podres. Em verdade, passamos de celeiro e de pulmão do mundo para uma nação da qual, temporariamente, muitos querem distância. E o que dizer de nós, brasileiros? As portas não podem ser fechadas. É o direito sagrado de ir e vir. No entanto, elas deixaram de estar escancaradas como dantes. Cansaram de nós, notadamente dos 30% que insistem em defender a tirania e a exclusão como formas de vida. Como são obrigados a nos ver pela frente, viramos tão ou mais desimportantes do que os vizinhos da Venezuela.
Difícil exigir respeito a um governo que concede Graça (indulto) a um ex-policial militar eleito deputado federal, mas que jamais se apresentou como parlamentar. Pelo contrário. Musculoso e metido a brabo, prima por afrontar magistrados e ameaçar quem lhe atravessar o caminho. Mais difícil ainda é cobrar homenagens e reverências a alguém que estimula a violência contra as instituições e protege um malfeitor apenas por se tratar de aliado. E tudo isso em nome da defesa da democracia. Para os governantes sérios, isso tem outra denominação. Uma coisa é defender uma ideologia, outra coisa é ultrapassar todos os limites do Sistema Democrático de Direito.
Será que um dia seremos considerados sérios? Pode ser. Sou otimista, mas, por enquanto, viajo nos escritos de Fernando Pessoa, mais precisamente nos pensamentos de Álvaro Campos, um dos heterônimos do mais universal poeta português. Datado de janeiro de 1928, se fosse concebido hoje o poema Tabacaria nos mergulharia nas profundezas da angústia e do pessimismo. Seria o retrato mais fiel do cansaço e da inquietação diante do incompreensível. “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tem hoje em mim todos os sonhos do mundo…Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Fiz de mim o que não soube. E o que podia fazer de mim não o fiz”.
De novo cruzando nosso caminho, a França, agora de Emmanuel Macron, nos mostra o exemplo a ser seguido. Embora também raivosa, a extrema-direita de Marine Le Pen perdeu a eleição e, apesar de não engolir, soube entender a derrota. Faz parte do processo democrático. Poema do conflito, Tabacaria é um resumo cruel do que somos. Não precisa ser muito inteligente para percebermos que mudamos, mas nem sempre conseguimos enxergar o que está à nossa frente. Pior são os que sequer tentam se alinhar às mudanças do mundo. A globalização nos impôs a obrigação de interagir, inclusive com quem nos faz mal. Internamente, só seremos sérios no dia em que “conseguirmos conquistar com braço forte o penhor dessa igualdade”. Seremos sérios quando, em lugar do sono profundo em berço esplêndido, pensarmos no Brasil como mãe gentil de todos os filhos deste solo. Em síntese, a frase de De Gaulle continua firme entre nós.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978