Há tempos, Elba Ramalho é artista independente. Mais precisamente, como a cantora lembra, desde o disco Qual o Assunto Que Mais Lhe Interessa?, lançado em 2007 – e com o qual ganhou seu primeiro Grammy Latino. Após 40 anos de estrada, a liberdade artística lhe traz a doce sensação de ser dona de seus próprios rumos. “O desvinculamento meu dos grandes selos foi para que eu ganhasse a liberdade”, diz ela, antes de partir para Trancoso, na Bahia, onde mantém um projeto de shows intimistas com convidados nessa época do ano.
“Acho que artista tem que ser livre. Não consigo entender como você pode ficar sempre atendendo à necessidade do mercado. Não tenho mais que provar nada. É aquela velha história: eu podia ter continuado a fazer, a cada ano, Banho de Cheiro 2, 3, 4. Foi uma música que pegou, virou um grito do carnaval. Mas não estou preocupada com essa história.”
E foi por passar a integrar a cena indie – mesmo preservando o status de grande nome do mainstream – que Elba pôde voar mais longe em termos de sonoridade. Ela pode, sim, fazer frevo, forró, entre outros ritmos que marcaram sua carreira, mas se (e quando) quiser. Essas experimentações já vinham, não por acaso, desde Qual o Assunto Que Mais Lhe Interessa? e se consolidam agora, em seu novo álbum, O Ouro do Pó da Estrada, o 38.º da carreira, em que se percebe cristalizada uma observação bem colocada por Zélia Duncan sobre Elba no material distribuído para a imprensa: “Tem um pé no sertão da sua terra e o outro no mundo”.
Elba também percebe dessa forma seu novo trabalho, que tem produção de Yuri Queiroga e Tostão Queiroga. “Já venho fazendo um pouco isso na minha história musical, mas, nesse disco, a gente fincou a estaca no chão mesmo, e a minha maturidade de passear por vários estilos, procurando também me renovar no canto, em alguns (momentos) em tons mais baixos, outros em tons mais altos”, pondera. “‘O ouro do pó da estrada’ é o aprendizado, é aquilo que você acumula, e acho que acumulei bastante para comemorar 40 anos, me desafiando: ‘desacomoda, Elba, se reinventa para você ter motivação e não ficar chata como artista cantando a mesma coisa’.”
Ao longo de suas 13 faixas, O Ouro do Pó da Estrada, aliás, trata muito dessa ideia do caminhar. A começar pela música que abre o disco, Calcanhar, parceria de Yuri Queiroga e Manuca Bandini, com texto incidental de Bráulio Tavares, que já tinha sido gravada pela cantora pernambucana Ylana Queiroga, irmã de Yuri, e ganhou versão mais “pesada” na releitura de Elba. “É uma das minhas músicas preferidas. Gosto do resultado sonoro que a gente fez, um baião meio rock n’ roll. Abri com ela, porque acho uma música forte, e é a coisa também do pisar, do caminhar.”
Nesse mesmo diálogo sonoro, mas com uma leve atmosfera de carnaval pernambucano, O Girassol da Caverna vem na sequência, com dueto delicioso de Elba e Ney Matogrosso. A canção é de Lula Queiroga, e foi gravada no disco Baque Solto, de Lula e Lenine, na década de 1980. “Essa música foi um resgate meu, fui buscar lá em 83, 84. O Yuri sugeriu que o Ney viesse. Eu disse: que genial, vamos ver se ele topa porque é a cara dele, pela letra, pela poética. Ele gostou de cara. E arrasou. É a primeira vez que um disco meu tem participação do Ney; no palco, já fizemos coisas juntos. Somos amigos há muito tempo.”
No repertório, O Girassol da Caverna é seguida de outra regravação, Girassol, canção que ficou famosa na interpretação de Toni Garrido à frente do Cidade Negra. Aqui o sucesso recebe nova roupagem, com introdução de cordas, e depois transitando entre o reggae e o xote. “Fiz muitos encontros com o Cidade Negra, muitos shows. Sou muito amiga do Toni. O barato e o prazer de ser intérprete é exatamente essa possibilidade de resgatar, trazer o (Arthur) Verocai, que veio com esse arranjão de cordas, e a levada do Yuri foi pensando na minha alegria, no palco.”
Mais adiante, há outra aproximação interessante no roteiro do disco, entre a canção José, de Siba (do Mestre Ambrósio) e O Fole Roncou, de Luiz Gonzaga e Nelson Valença, como representações de duas gerações da música nordestina. “Eu queria essa diversidade de gerações, novas com antigas, com o que aprendi e com o que convivo.”
Da mesma forma que é reverencial ao mestre Gonzagão, no álbum, Elba também recupera um lado B da obra de Belchior, ao cantar Princesa do Meu Lugar. Como foi essa escolha? “É um chamego meu. Belchior é um gênio. É uma música atraente, a gente conseguiu fazer meio um reggaezinho, suave, e fala também da história dele de ir, da vontade de ir embora”, diz a cantora. Ela conta que, assim como os outros amigos do compositor, ficou anos sem saber do paradeiro dele. “Ele sumiu para todos. Com a morte dele, chorei muito, sofri muito.”
O Ouro do Pó da Estrada traz outras pérolas, como Oxente, música que Marcelo Jeneci finalizou com Chico César especialmente para o disco; O Mundo, de André Abujamra; Se Tudo Pode Acontecer, de Arnaldo Antunes, Alice Ruiz, João Bandeira e Paulo Tatit; Na Areia, de Juliano Holanda, segundo Elba, “uma das grandes promessas da cena musical de Pernambuco”. Vale ressaltar que, nesse processo de “desacomodar”, os produtores do disco tiveram papel importante, sobretudo Yuri Queiroga, que desafiava Elba e ela, instigada, embarcava em suas ideias. “Eu como artista quero caminhar. Posso cantar Chico Buarque, ou Lula e Lenine, ou Zé Ramalho, inéditas, ou só forrozinho simples. A essa altura, acho que posso me dar a esse luxo. A gente quer surpreender.”