O intrépido explorador avançou pela floresta indiana, cortando com o machete a vegetação densa que barrava o seu caminho. De súbito, numa clareira, deparou-se com um tigre de olhos amarelados.
Não. O intrépido explorador era na verdade um moleque de uns 11 anos, se tanto. Não estava numa floresta da Índia, e sim num matinho de um terreno baldio de uma cidade serrana fluminense. E, claro, não havia tigre. Mas ele adorava brincar de aventureiro audaz e se embrenhar pelo matagal, empunhando, não um machete, mas um simples pedaço de pau achado por ali mesmo.
Não. O menino ainda existia dentro dele, o intrépido explorador continuava a visitá-lo em sonhos – embora cada vez menos –, mas ele havia crescido. Era pai de uma menininha de 10 anos, e fora visitá-la em uma cidadezinha do interior paulista. A mata, nada cerrada, ficava junto à casa onde ela morava com a mãe, do lado de lá de uma cerca que ele transpôs com facilidade. E não, ele não tinha um facão, nem mesmo uma faca. Como havia feito décadas antes, o intrépido explorador/o garoto/o homem feito empunhava um pedaço de madeira recolhido do chão.
Sim, havia uma clareira. Pelo menos isso. Não, não havia tigre. O que havia era uma aranha grande, não uma caranguejeira, mas grande, de coloração marrom. Ele a olhou, e teve a sensação de ser olhado de volta. Aparentemente, ela percebeu o risco que corria. O bicho ergueu algumas patas em posição de ataque ou defesa (ou o ferrão, ele nem sabia como as aranhas atacavam e se defendiam), mas a paulada já havia partido e a esmagou.
Não. Não foi exatamente uma posição de luta, e foi essa circunstância que inscreveu o confronto para sempre em sua memória. O bicho ergueu o ferrão (ou dois de seus vários apêndices) para o alto, como se implorasse proteção aos deuses dos aracnídeos. Mas a súplica não foi atendida, a madeira cortou o espaço e esmagou o bicho. O intrépido explorador/garoto/homem feito até pensou em desviar o golpe, mas era tarde demais para mudar-lhe a direção.
Depois disso, não houve mais sentido em continuar a expedição. Ele havia matado – não, desferido um golpe vindo do alto, irresistível, impessoal, como uma divindade que arremessa um raio contra reles mortais – e não estava nada orgulhoso do que fizera, sentia um gosto amargo na boca. Arremessou longe o pau, deixou a clareira, voltou sobre seus passos, pulou de volta a cerca e entrou na casa da filha.
Não. Quem fez isso foi o homem feito. O garoto e o intrépido explorador limitaram-se a olhá-lo gravemente, sem julgamento, e a desaparecer em seguida. Não, não para sempre.
Os dois estão aqui, observando com o mesmo olhar grave, enquanto o homem – hoje um idoso – relata este episódio.