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Fá sustenido de Berenice vira convite de casório

Adágio Allegro, desde menino, fora diagnosticado com algo raro. Não que fosse doença, porém, após alguns anos, passou a deixar a mãe colérica. Acredite ou não, o moleque havia nascido com ouvido absoluto. Isso mesmo! Absoluto!

Por conta de tal característica, Adágio conseguia não somente distinguir todos os sons, mas também apontar, certeiro como as flechas impossíveis de Robin Hood, a nota musical. Todavia, não pense você que o menino falava apenas “dó”. Não mesmo! Tacava logo “dó menor sustenido!”

De tão afamado ficou, alguém teve a providencial ideia de apelidá-lo de Diapasão. A princípio, Adágio ficou furioso e, dizem, só parou de berrar quando percebeu o som do próprio choro em si bemol menor. No final das contas, acabou gostando da alcunha, que percebeu ser sua sina.

Já aos 10 anos, Adágio havia se tornado músico respeitado na banda do da quadra. Tocava de tudo, desde flauta até trombone, passando por trompete e clarinete. Clarinete, sim, senhor! O guri era um prodígio.

Aos 12, não teve jeito de segurar o ímpeto do pirralho. Queria porque queria ser o maestro. E quem seria besta em não acatar tal desejo? Afinal, Afonso, que há quase seis décadas comandava aquela trupe, estava sem forças para manter a batuta firme. Resultado: aposentaram o velho.

Nas mãos firmes de Adágio, a antes banda de quadra, agora havia se transformado em uma orquestra. A fama correu a cidade inteira, até que chegou aos ouvidos do administrador do Plano Piloto e, em seguida, aos do governador. Todos desejavam tirar uma casquinha da fama daquele prodígio. Diziam até que havia gente importante do exterior querendo levá-lo embora.

Pois foi justamente nesse tempo em que o governador, em conluio com o prefeito, pensou numa ideia quase infalível para manter Adágio na região. Uma namorada! Sim, isso mesmo! Isso porque, até onde se sabia, o rapaz, agora com 20 anos, estava solteiro. Solteiro e desimpedido.

Os políticos inventaram um concurso de beleza para, assim, escolher a futura namorada de Adágio. Obviamente, ninguém sabia que aquele evento era para tal. Seja como for, houve centenas de inscrições, mesmo porque a premiação não era das piores e, além disso, a vencedora receberia um troféu, sem contar a faixa de rainha da beleza.

Para encurtar a história, o concurso aconteceu logo no mês seguinte. As finalistas, uma mais linda do que a outra, se esforçaram além da conta. Entre loiras e morenas, ganhou a única ruiva. Jéssyka! Uma belezura!

Dois dias após a coroação, Jéssyka foi convidada para uma recepção no amplo salão da sede do governo. A moça, assim como todas as rainhas, foi ladeada por algumas damas de companhia, que foram escolhidas pelo governador, que, esperto que só, mandou trazer as quatro últimas colocadas no concurso. Dessa forma, pensou, a beleza da rainha ficaria ainda mais evidente.

Adágio também foi convidado para a festança. Ele, além de comandar a orquestra naquele evento, iria se sentar à mesa com a rainha da beleza. Tudo arranjado, era questão de tempo para que os dois pombinhos se sentissem atraídos um pelo outro.

Conversa vai, conversa vem, Adágio, sempre com os ouvidos atentos, parece não ter gostado da voz esganiçada de Jéssyka. Ademais, a rainha da beleza também parecia ter outros interesses além de manipuladores de batutas. Dava até para ouvir os pensamentos do governador e do administrador regional, que, antes confiantes, agora carregavam só lamúrias.

Jéssyka, cuja soberba lhe havia subido à cabeça, decidiu se levantar e ir embora. Aquela situação era uma afronta para uma rainha. Não uma rainha qualquer, diga-se de passagem. Rainha da beleza! Pois se levantou e, apenas com um olhar para as suas damas, disse para que todas a acompanhassem. E foi o que fizeram, mas ocorreu um incidente com a Berenice, justamente a última colocada do concurso.

Assim que a Berenice ergueu seu corpo ligeiramente roliço, eis que se ouviu um som vindo do seu orifício mais ao sul. Imediatamente, olhares repreendedores surgiram de todos os lados. A moça, sem ter onde enfiar o rosto de tão envergonhada, foi salva por Adágio, que ficou encantado. Tanto é que, após seis meses de namoro, os dois ficaram noivos e, parece, vão se casar no próximo ano.

Percebo que você ainda está aqui me lendo. Na certa, está curioso para saber como é que o Adágio salvou a Berenice daquele imbróglio. Pois bem, eis as palavras do gajo:

— Nem mesmo um saxofone consegue fazer um fá sustenido tão bonito.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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