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Cala a boca, Ofélia

Falas insensatas de Guedes mostram Brasil sem rumo

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Regiane Oliveira, Felipe Betim e Maria Rossi/Via El País - Edição Bartô Granja/Foto Reprodução

Há um consenso no Brasil de 2021 sobre uma elite econômica no país que perdeu a vergonha de dizer o que pensa intimamente. Feito um fio desencapado, sem medo de ferir. Na linha do “E daí? Quer que eu faça o quê?”, que o presidente Jair Bolsonaro disse quando as mortes por covid-19 já eram contadas aos milhares em abril de 2020. O mandatário acumula centenas de expressões corrosivas que ajudam a fragmentar o senso coletivo brasileiro. Mas diversos ministros seus não ficam atrás. Nem mesmo o titular da Economia, Paulo Guedes. O homem do mercado, fiador do então candidato Bolsonaro, e que, em tese, seria um dos agentes moderadores do presidente.

Paulo Guedes tem se destacado ultimamente mais por suas frases caricatas, ou passivo agressivas, do que por sua política econômica. Tantas falas desconectadas o transformaram em protagonista de uma intervenção artística na cidade de São Paulo, neste fim de semana. Artistas visuais e ativistas espalharam lambe-lambes e pôsteres com fotos do ministro e trechos de frases ditas por Guedes ―”Todo mundo quer viver”― e críticas pelas avenidas Faria Lima e Paulista, algumas das vias símbolo do sistema financeiro no Brasil.

Em dois anos e meio de Governo, Guedes foi perdendo a credibilidade junto a seus pares, e também o respeito diante da falta de sensibilidade para lidar com o cargo e o peso de suas palavras, como relatam as fontes ouvidas por esta reportagem. “Qual o problema agora que a energia vai ficar um pouco mais cara porque choveu menos?”, questionou nesta quarta-feira, 25 de agosto, desconsiderando que a alta afeta famílias e produtores. “Não adianta ficar sentado chorando”, afirmou um dia depois, no Senado. Não foram as únicas falas da semana. “A inflação está subindo no mundo inteiro. A nossa ser 7% ou 8%, estamos dentro do jogo”, afirmou dias antes, na segunda-feira, naturalizando o aumento dos preços que tanto afeta os mais pobres, e que também representa um estouro da meta da inflação do Brasil, de 3,75% —o teto tolerado é de 5,25%.

A meta de inflação virou um princípio basilar no Brasil desde o plano Real, em 1994, quando os preços finalmente foram domados depois de décadas de descontrole. Se por um lado as declarações de Paulo Guedes chocam pela insensibilidade com quem precisa cozinhar à lenha por causa da alta do gás, espantam também os economistas que viam no ministro a esperança de ter essa cartilha respeitada depois da alta inflacionária registrada nos anos Dilma Rousseff (2011-2016).

O ministro também foi alvo de críticas pelo tom preconceituoso ao tratar do programa de empréstimos estudantis, o FIES, ao dizer que ele banca a universidade até para filho de porteiro que zerou o vestibular. “O porteiro do meu prédio, uma vez, virou para mim e falou assim: ‘Seu Paulo, estou muito preocupado. Meu filho passou na universidade privada’. Ué, está triste por quê? ‘Ele tirou zero na prova”, relatou. Em outra ocasião, incluiu empregadas domésticas num debate sobre câmbio. Ao dizer que dólar alto era bom, em fevereiro de 2020, afirmou que antes “empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada”. Houve outra como: “Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo”, disse em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo no fim de 2019.

O economista e ex-diretor do Banco Central Alexandre Schwartsman entende Guedes como uma espécie de animador de auditório. “No final das contas, foi exatamente o que o qualificou para seu atual emprego”, opina. Mas para qual auditório ele está falando, já que suas falas causam espanto? “Mas ele não sabe disso; acha que está agradando, como agradava quem ia ouvir as baboseiras que falava nas palestras dele antes de virar ministro”, diz Schwartsman.

A também economista Ana Carla Abrão, head da consultoria Oliver Wyman no país, ainda lembrou que a agenda liberal prometida por Guedes, e que foi fundamental para a eleição de Bolsonaro em 2018, não saiu do lugar. “As reformas não aconteceram, as privatizações não aconteceram, os ganhos de eficiência do Estado não aconteceram. E, sinceramente, não acredito que vão acontecer”, disse ela em entrevista a este jornal em agosto.

Para Débora Freire, economista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as últimas falas do ministro não só representam a visão de setores da elite econômica como também indicam “um desespero de quem não está sabendo como lidar com a crise econômica”. Ao dizer que não vê problema no preço da energia mais caro, por exemplo, ele não cita que a alta afeta não somente o orçamento das famílias como também encarece a produção, encarece o produto final e gera ainda mais inflação.

A estudiosa descreve um Ministério da Economia “totalmente perdido, sem estratégia nem direcionamento contundente”, e sem propostas com bases em estudos. “O que vemos é que Paulo Guedes é movido por ideologia. É um técnico com um viés ideológico muito forte”, opina. E que ideologia é essa? De acordo com Débora Freire, Paulo Guedes e setores da alta sociedade e do mercado financeiro são os herdeiros diretos de uma visão da década de 1970, de ditadura militar, época em que se dizia que o importante é crescer o bolo para depois dividi-lo entre a população —ao invés de crescer a economia ao mesmo tempo em que se distribui renda.

“Isso é totalmente arcaico. Desigualdade traz uma série de problemas não só sociais, como também econômicos”, explica. Como a desigualdade também limita o mercado interno, continua a economista, para quem os empresários que produzem vão vender? “Crescimento depende da perspectiva de demanda, e se a maioria da população tem renda muito baixa, então a perspectiva é muito ruim.”

As falas revelam uma visão elitista do Brasil mas também a tônica de algumas decisões à frente do Ministério. No ano passado, em meio às discussões da reforma tributária, Guedes e sua equipe propunham desonerar a folha de pagamento de setores da economia. Para não afetar a arrecadação do Governo, defendiam um imposto de transação financeira —a nova CPMF— que afetaria todos os cidadãos e geraria, segundo cálculos do Ministério da Economia, 130 bilhões de reais para os cofres públicos. Em outras palavras, os empresários pagariam menos e o conjunto da sociedade, mais pobres incluídos, pagariam mais.

O psicanalista Christian Dunker vê em Guedes o desprezo pelos mais pobres como parte de uma estratégia da elite neoliberal amplamente adotada pelo Governo Jair Bolsonaro. “Enquanto o liberalismo clássico tinha um pudor, um respeito e até mesmo tentava proteger as pessoas dos excessos de sofrimento — porque isso interferiria na produção e no consumo — os neoliberais descobriram que podem aumentar o sofrimento como forma de extrair mais desempenho e produtividade”, afirma. “Quem pode desdenhar do aumento da inflação? Só alguém com muito poder e que presume que sua declaração não vai chegar nas pessoas comuns. Ela vai chegar naqueles que têm uma relação com o aumento da opressão”, diz.

É uma estratégia de diálogo entre os iguais que não tem dado frutos. A gestão econômica e falta de jogo político de Guedes conseguiram desagradar até mesmo os aliados do Centrão, que pediram a cabeça do ministro da Economia ao Governo numa antecipação à reforma ministerial prevista para abril de 2022, conforme publicou o Estadão. “Guedes é uma pessoa que vive um impasse subjetivo. Ele tem muito dinheiro e muito poder, mas não é reconhecido por seus pares. Ele não é confirmado como um grande teórico, não tem uma obra, não escreveu coisas relevantes. Vive um pouco o drama daquele que se sabe abaixo das condições para o cargo”, analisa Dunker.

Em entrevista ao El País no início de agosto, a economista Elena Landau lembrou que torcia pelas promessas do ministro quando ele chegou ao cargo. Mas os resultados de sua política econômica deixaram muito a desejar.

“Guedes vai entregar a economia pior do que recebeu, que era inflação dentro da meta e juros baixos.” Schwartmann vai além, e o vê como um agente dos arroubos autoritários do seu chefe. “Não tem nenhuma agenda consistente de reformas. Você vai ver as propostas, e uma não conversa com a outra. O plano é tentar eleger o presidente ou anular a eleição. Não vai além disso”, diz o economista, que foi diretor do BC e economista-chefe do banco Santander.

Em seu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, Dunker explica como, há anos, as classes média e alta lidam com os conflitos no Brasil: construindo muros e designando síndicos, responsáveis por manter em dia seu status quo. Durante a pandemia, a sociedade brasileira acabou regredindo para uma maneira de ver o mundo, até por conta das medidas sanitárias para tentar conter a covid-19, em que “o mundo é o tamanho do seu condomínio”. O psicanalista explica que Guedes se comporta como o “síndico autoritário” do Governo Bolsonaro. “Ele é um síndico regressivo ―está nos anos sessenta, setenta, porque a política que ele adota está, no mínimo, em crise teórica―, que não percebe que está a serviço dos outros, ele acha que é ele quem está mandando”, afirma.

No papel de síndico de Bolsonaro, Guedes incorpora o que há de pior na aristocracia brasileira, que não aceita ser questionada, dar satisfações ou pedir desculpas pelos seus erros, posturas que o psicanalista compara às adotadas no passado por senhores de escravo, coronéis e latifundiários. A forma de pensar do ministro da Economia é “tão confiante de si, na sua ciência, na renovação que estaria trazendo para a economia”, que ele ignora as regras básicas da política. Fala o que quer, quando quer, doa a quem doer. “Guedes é alguém que pratica um cinismo aberto”, analisa. O problema é que o ministro parece não perceber que está para ser devorado pelo jogo cujas regras ele mesmo ajudou a determinar.

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