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Faz parte do (meu) show entrar na Bossa Nova

Foto/Arquivo Notibras

Os olhos de Lucinha Araújo brilham como se o filho estivesse logo ali, a alguns andares do mesmo edifício de Ipanema onde, em uma década de 1980 cada vez mais distante, foram uma família. Cazuza morreu vítima da AIDS em 1990. Seu marido, João Araújo, um dos maiores executivos de gravadora do País, se foi mais de 20 anos depois, em 2013. “Os dois morreram no mesmo quarto”, conta Lucinha. “Depois disso, não suportei ficar no mesmo apartamento e me mudei para este, alguns andares abaixo.” Ela ainda chora e sorri com as memórias, e faz uma confidência atiçando o repórter: “Menescal esteve aqui ontem mesmo e eu mostrei uma bossa nova de Cazuza. Ele é danado. Está fazendo um show de bossa nova só com as músicas do meu filho.”

Dias depois, Menescal atende o telefone: “É isso mesmo, estamos fechando o repertório.” Eram efemérides redondas demais para se ignorar. Menescal fez 80 anos em outubro passado, Cazuza faria 60 anos no próximo dia 4 de abril e a bossa nova, essa senhora conservada, chega também aos 60 anos se contarmos como seu nascimento o agosto de 1958, quando João Gilberto lançou o compacto com Chega de Saudade de um lado e Bim Bom do outro. As peças se encaixaram.

Roberto Menescal se juntou à cantora e pianista Leila Pinheiro e ao cantor e ex-baixista do Barão Vermelho, Rodrigo Santos, e, juntos, estão fechando a noite Faz Parte do Meu Show, que chega a São Paulo dia 5 de abril, na Casa Natura, um dia depois do aniversário de Cazuza e no dia do aniversário de Rodrigo, 54 anos. No Rio, será em 27 de abril, no Vivo Rio. Uma série de apresentações já começa a ser marcada pelo Brasil.

As músicas gravadas por Cazuza vão ganhar a linguagem da bossa nova, no tratamento de Menescal e de Leila. “Estou mexendo nas harmonias, mas mexendo mesmo”, conta o violonista. A porção rock and roll do encontro, Rodrigo Santos, vai cantar algumas e se revezar entre violão e baixo. “O melhor é que está sendo um grande desafio”, ele diz, sobre o maior grau de dificuldade de se tocar músicas com mais acordes. “Menescal vem com algumas harmonias muito sofisticadas. Estamos desconstruindo algumas e respeitando um pouco mais as melodias. Vamos começar a descobrir tudo no ensaio.”

Algo do projeto aponta para uma satisfação do próprio Cazuza. Uma vertente sólida acredita que sua saída do Barão Vermelho, em 1985, se deu sobretudo pela crescente paixão pela música brasileira que não parecia mais caber em uma banda de rock. Com todo o risco de ser mal compreendido por um roqueiro, a pergunta é quase inevitável: o rock teria ficado pequeno para Cazuza?

“Creio que uma banda ficou pequena para ele. Eu passei por isso recentemente, Frejat (ex-vocalista do Barão) passou também. Cazuza passou a sentir ainda mais fortes as influências de Cartola e Lupicínio, lembrando que ele já tinha esse trânsito desde a infância, na casa dos pais. O conceito de banda pode engessar um momento de crescimento musical.”

O show terá na abertura um vídeo em que aparecerá Lucinha Araújo Sempre emocionada ao falar do filho, ela passa logo a cena para o trio. Menescal fala das canções que já estão na esteira. Faz Parte do Meu Show, Blues da Piedade, Bete Balanço, Eu Queria ter Uma Bomba, Codinome Beija Flor, Maior Abandonado. Rodrigo dá mais detalhes. “Um Trem Para As Estrelas (de Cazuza e Gilberto Gil) vai ser uma versão pensada pela Leila, está linda. Gosto também do que vamos fazer com Solidão que Nada e faz Parte do Meu Show.

Maior Abandonado ganha outra forma. Blues da Piedade virou um blues com samba, com inversões lindas de acordes.” A canção que Lucinha mostrou a Menescal na tarde em Ipanema é Doralinda, uma bossa nova que Cazuza fez com João Donato (a letra está ao lado) Ela vai estar no show e será cantada por Rodrigo.

Uma música de poucos acordes não ficaria desfigurada quando é refeita com as rearmonizações jazzísticas da bossa nova? Essa é a ideia, segundo Menescal. A simplicidade do rock e da música pop brasileira colidiu algumas vezes com a sofisticação de gêneros como a bossa e o samba-canção. “Há trechos com dois acordes originais nos quais em vou colocando várias notas”, diz Menescal. “Pô, meu irmão, esse cara tocou em dois minutos mais acordes que eu toquei na vida toda”, disse Tim Maia ao se deparar com um músico de bossa nova.

O encontro do trio remete a uma rixa dos velhos tempos. Músicos de rock e de bossa nova alimentavam desprezos mútuos naqueles anos de 1980, uma espécie de reedição das desavenças estéticas dos anos 60. A esquerda mais rígida defendia um nacionalismo estético, sem influências da música norte-americana. A Jovem Guarda se tornava, assim, a inimiga número um da MPB. Em 1967, Elis Regina e Edu Lobo chegaram a desfilar pelas ruas de São Paulo em um episódio conhecido como Passeata Contra a Guitarra Elétrica. Quase duas décadas depois, as rivalidades se repetiam. Em uma inversão de discursos, os roqueiros agora consideravam a MPB a mais domesticada das artes, uma alienação regada a teclados de Lincoln Olivetti. Enquanto isso, os músicos do “jazz brasileiro” viam no rock a mais pobre das expressões, regada a sequências primárias de acordes e vocalistas desafinados.

Menescal confessa que foi ele também um preconceituoso ao olhar para o rock. “Só fui vencer isso quando fui trabalhar na gravadora Philips, nos anos 80.” Quando Edu Lobo venceu o terceiro Festival Internacional da Canção de Música Brasileira, em 1967, Menescal respondeu assim a alguém que quis saber do resultado: “Quem ganhou? Ah, um baiãozinho aí…” Música boa era música de muita harmonia. E assim segue até hoje, para muitos. Cazuza, o único roqueiro dos anos 80 a transitar com respeito entre bossa novistas, mostrou o quanto eles estavam enganados.

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