Camila Maciel
O assassinato de Manoel Fiel Filho naquele 17 de janeiro de 1976, na carceragem do DOI-Codi do 2º Exército, em São Paulo, não teve a mesma repercussão da morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida menos de três meses antes no mesmo local e em circunstância semelhante.
Assim como Vladimir, Fiel foi morto sob tortura dos agentes da ditadura. A imprensa só soube do acontecido três dias depois, após a divulgação de uma nota lacônica pelo 2º Exército informando que o metalúrgico havia cometido suicídio.
Apesar da pouca repercussão, o assassinato do metalúrgico irritou o presidente Ernesto Geisel, que mandou demitir o comandante do 2º Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, praticamente desmontando a máquina de tortura e morte que funcionava no DOI-Codi de São Paulo.
A saída de Ednardo não acabou com as violações aos direitos humanos nos porões da ditadura, mas os torturadores passaram a ser mais “cuidadosos” e a linha dura militar perdeu força política dentro das Forças Armadas, o que levou, em 1977, à derrota do general Sylvio Frota, em suas pretensões de suceder Geisel na Presidência da República. O presidente escolhido por Geisel foi o general João Baptista Figueiredo.
No domingo, 17 de janeiro de 2016, o assassinato do metalúrgico Manoel Fiel completa 40 anos. E a Agência Brasil preparou uma série de matérias especiais sobre esse triste episódio da história do Brasil.
A repórter Camila Maciel e a fotógrafa Rovena Rosa foram até a cidade de Bragança Paulista, a 90 quilômetros de São Paulo, onde conversaram com a mulher e as filhas de Manoel Fiel Filho. “Meu marido morreu e salvou a turma que estava presa lá [no DOI-Codi]”, disse Thereza Fiel, ressaltando que o assassinato do marido provocou mudanças no tratamento dado aos presos políticos da época.
A reportagem entrevistou também Clarice Herzog, mulher de Vladimir, e o jurista Hélio Bicudo, que atuou no processo aberto contra o Estado brasileiro, responsabilizando-o pela morte do metalúrgico.
Sai general, entra general – O assassinato de Manoel Fiel Filho foi a gota d’água para que o presidente Ernesto Geisel exonerasse do comando do 2º Exército o general Ednardo D’Ávila Mello e tirasse da chefia do Centro de Informações do Exército (CIE) o general Confúcio Danton de Paula Avelino. Menos de três meses antes, em outubro de 1975, no mesmo local e em circunstâncias semelhantes, havia sido torturado e assassinado o jornalista Vladimir Herzog.
Geisel soube da morte de Fiel pelo então governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins. Era um domingo, o presidente estava na residência do Riacho Fundo, em Brasília, preparava-se para dormir quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, Paulo Egydio narrou “o que tinha acontecido na carceragem do DOI-Codi.
“Ele me contou que tinha havido um segundo enforcamento. Passei uma noite de cão. Não dormi, irritado, pensando como iria agir”, diz Geisel sobre o episódio em depoimento, em 1994, para a professora de ciência política Maria Celina D’Araujo e o antropólogo Celso Castro, e que está no livro Ernesto Geisel, editado pela Fundação Getulio Vargas.
A preocupação e a irritação do presidente eram porque, após a morte de Vladimir Herzog, há menos de três meses, alertara o general Ednardo para o que estava acontecendo no DOI-Codi e determinara que o militar tomasse providências para evitar que outra morte ocorresse em uma dependência do 2º Exército. Naquela ocasião, ao contrário do que queria Ednardo, Geisel exigiu também que o general instaurasse um Inquérito Policial Militar (IPM) para investigar a morte do jornalista.
“Várias vezes, em encontro com Ednardo, em Brasília, eu havia dito: ‘Ednardo, olha São Paulo, vê lá o teu comando, as coisas não estão bem’. Quando resolvi mandar abrir o inquérito [da morte de Vladimir Herzog], e o Ednardo opôs algumas dificuldades, vi que havia problemas. Mas exigi que o inquérito fosse feito e que tudo fosse apurado. Não sei se o inquérito estava certo, ou não, mas o fato é que apurou que o Herzog tinha se enforcado. A partir daí, o problema do Herzog, para mim, acabou”, afirmou Geisel para Maria Celina e Celso Castro.
Por isso, quando soube da morte de Manoel Filho, o presidente Geisel sabia que tinha que agir com firmeza por entender que a situação no 2º Exército estava fora de controle e que era preciso afastar o general Ednardo. “Eu vi que a solução era tirar Ednardo”, disse. O presidente, então, marcou uma reunião para a manhã do dia seguinte, no Palácio da Alvorada. Convocou o ministro do Exército, Sylvio Frota, o chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), João Figueiredo, e o chefe do Gabinete Militar, Hugo Abreu, comunicou o ocorrido e pediu a Sylvio Frota que exonerasse o general Ednardo. Frota não contestou. Para o lugar de Ednardo foi nomeado o general Dilermando Monteiro, pessoa próxima de Geisel. Com as mudanças feitas, o presidente praticamente desmantelou o aparelho de comando da tortura em São Paulo.
Relações com o ministro – Para Geisel, forjado na hierarquia e disciplina militar, o que estava acontecendo no 2º Exército era de responsabilidade do seu comandante e, por isso, Ednardo não poderia continuar ali. Ou ele não tinha controle sobre o que acontecia no DOI, ou era conivente. O episódio da exoneração do general Ednardo resultou, meses depois, na exoneração de Sylvio Frota do comando do Ministério do Exército. “O Frota não quis compreender isso, e acabei tendo que tirá-lo”, afirmou Geisel em seu depoimento.
O fato é que as relações do presidente com seu ministro do Exército não eram boas. Havia uma disputa de poder entre os dois. Sylvio Frota trabalhava para ser o próximo presidente, com o apoio dos militares linha dura. Geisel e o seu chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, pensavam na distensão do regime. De acordo com o jornalista Elio Gaspari, no livro O Sacerdote e o Feiticeiro, quarto volume da série A Ditadura Encurralada, a morte de Fiel precipitou o confronto de Geisel com o ministro do Exército.
“O presidente lançou-se ao primeiro choque frontal e público com um chefe militar. Era o choque que evitara em 1964, quando fizera vista grossa às torturas que haviam sido praticadas em quartéis do Nordeste, e que evitara nos primeiros anos de governo, quando se vira encurralado por Frota no caso da prisão do ex-deputado Marco Antônio Coelho”, diz Gaspari. Morto em novembro do ano passado, o mineiro Marco Antônio Tavares Coelho era deputado estadual no Rio de Janeiro e um dos dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na época do golpe militar de 1964. Teve o mandato cassado, foi preso e torturado em 1975, quando era editor do jornal Voz Operária, do PCB.
A exoneração de Sylvio Frota ocorreu em 12 de outubro de 1977. No depoimento para Maria Celina D’Áraujo e Celso Castro, Geisel fala sobre sua decisão. “Quando verifiquei que tinha a maioria dos generais comigo, pelo menos os generais mais graduados, senti que era a hora de afastá-lo. Senti também que não podia demorar mais porque o problema ia ficar mais difícil, com as adesões que ele iria ter. Não pude tirá-lo antes porque eu não sabia, ou não tinha ainda a certeza, de que o Exército ficaria comigo. Com a avaliação que fiz, foi aquele o momento que achei mais adequado.”
A tese da historiadora Mariana Joffily, doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), diz que as três mortes de filiados do PCB – Vladimir Herzog, Manoel Fiel Filho e o tenente-coronel da Polícia Militar José Ferreira de Almeida – ocorridas em sequência no DOI-Codi paulista, representaram “o ápice do jogo de forças estabelecido entre o governo de Ernesto Geisel e a comunidade de informações do Exército”. “O pretenso suicídio de Manoel Fiel Filho levou à especulação, por parte de alguns setores, de que se trataria de uma provocação do DOI paulista à política [de distensão] do governo Geisel”, escreveu.
Agência Brasil