O isolamento social está funcionando na cidade de São Paulo. A curva de propagação da pandemia foi achatada. Mas atenção: debaixo dessa curva tem uma mola, e se a pressão exercida pelo isolamento for retirada antes da hora, quase todo o sacrifício poderá ter sido em vão.
Esse é o alerta de uma simulação feita pelo Observatório Covid-19 BR, um grupo de 50 pesquisadores, de diversas instituições, que monitora a evolução da pandemia e utiliza modelos matemáticos e epidemiológicos para projetar o comportamento dela em diferentes situações.
Um dos cenários modelados pelo grupo é como a pandemia teria evoluído no município de São Paulo se nenhuma medida de contenção tivesse sido implementada contra ela.
“Os dados mostram claramente que, sem as medidas de distanciamento social, o número de casos seria muito maior”, diz ao Jornal da USP o ecólogo Paulo Prado, professor do Instituto de Biociências (IB) da USP e cofundador do Observatório. “O achatamento da curva é uma realidade; está funcionando” — ainda que a taxa de isolamento na cidade esteja abaixo do ideal, completa ele.
Até o último domingo (24 de maio), passados exatamente dois meses desde o início da quarentena, as estatísticas oficiais registravam 45,5 mil casos e 3,5 mil mortes por Covid-19 no município de São Paulo. Num cenário hipotético de propagação “selvagem” (irrestrita) do vírus, porém, esses números já poderiam estar na casa de 500 mil casos reportados e 150 mil mortos, segundo o Observatório.
Os pesquisadores ressaltam que o objetivo da modelagem não é gerar prazos nem números exatos, mas simular como a pandemia tenderia a se comportar em diferentes cenários; e então comparar esses cenários hipotéticos para orientar a tomada real de decisões pelo poder público. Os números dos gráficos, portanto, devem ser interpretados mais do ponto de vista qualitativo do que quantitativo — ou seja, mais como ordens de grandeza e tendências do que valores ou resultados absolutos.
“Milhares de vidas foram salvas pelo isolamento; isso fica claro”, diz o pesquisador Roberto Kraenkel, do Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), cocriador do Observatório, ao lado de Prado e Renato Coutinho, do Centro de Matemática, Computação e Cognição (CMMC) da Universidade Federal do ABC.
Mas atenção: a guerra contra o SARS-Cov-2 ainda está longe de ser vencida, alertam os cientistas. Depois de olhar para o que poderia ter acontecido no passado, eles resolveram olhar para o que poderá acontecer no futuro. Simularam dois cenários extremos para o município de São Paulo: um, com a revogação total das medidas de distanciamento social a partir de 31 de maio; e outro, com a manutenção das medidas vigentes até o fim do ano.
A modelagem mostra que, se as medidas de isolamento fossem removidas agora — o comércio reabrisse, as escolas reabrissem, e as pessoas voltassem a circular normalmente pela cidade —, haveria uma explosão quase que imediata no número de paulistanos infectados; e o número de mortes, no fim das contas, seria quase tão grande quanto se nada tivesse sido feito desde o início.
Em comparação com o cenário de transmissão “selvagem” do vírus, o número acumulado de mortes seria apenas 4% menor. Já em comparação com o cenário de manutenção do isolamento social, seria 400% maior. Em outras palavras: cinco vezes mais paulistanos morreriam até o fim deste ano sem as medidas de isolamento do que com elas.
“Voltar à vida normal agora seria potencialmente devastador”, diz ao Jornal da USP a física Caroline Franco, colaboradora do Observatório e doutoranda no IFT-Unesp, onde trabalha com modelagem matemática de sistemas ecológicos e epidemiológicos. “O problema está controlado, mas não está resolvido.”
Isso porque a grande maioria da população ainda não foi infectada pelo SARS-Cov-2 (graças ao isolamento social) e, portanto, não possui qualquer nível de imunidade contra ele. Dados preliminares de um estudo que busca mapear essa exposição ao vírus indicam que apenas 5% dos paulistanos tiveram contato com o patógeno até agora. “Estamos muito longe ainda da chamada imunidade de rebanho”, alerta Kraenkel.
E como não há, ainda, vacinas nem medicamentos capazes de prevenir contra a Covid-19, acabar com o isolamento social agora seria quase como começar a pandemia do zero de novo, com todos os riscos de mortes e internações associados a isso.
Pico x Mola
“Haveria uma redução nas mortes; mas, ainda assim, seria um cenário catastrófico”, avalia Prado. Segundo ele, não faz sentido ficar discutindo se o pico da epidemia “já passou” ou “não passou”, porque a ocorrência desse pico depende de interações complexas entre uma série de circunstâncias políticas, sociais e epidemiológicas, que são mutáveis e, em muitos aspectos, imprevisíveis. Não é apenas uma questão de tempo.
“Por isso, faz mais sentido pensar numa mola do que num pico”, diz o pesquisador, que normalmente utiliza essas ferramentas de modelagem para entender fenômenos na natureza.
A pergunta crucial, segundo Prado, não é se o pico já passou ou quando ele vai acontecer, mas como fazer para manter essa mola pressionada, sem levar os hospitais nem a economia da metrópole ao colapso, até que uma solução definitiva para a Covid-19 esteja disponível — seja na forma de uma vacina ou tratamento. “Não dá para manter o isolamento social indefinidamente; então como é que vamos sair dessa?”, diz.
É justamente aí que esses trabalhos de modelagem se tornam especialmente relevantes, pois eles permitem simular cenários e testar diferentes estratégias de mitigação com antecedência, no computador, sem precisar passar por elas de verdade.
O tipo de modelagem usado para simular esses cenários futuros é conhecido como “modelo compartimental”, porque envolve separar as diversas variáveis que influenciam a evolução da pandemia em “compartimentos” — por exemplo, características ligadas à letalidade do vírus, à epidemiologia da doença, ao perfil demográfico da população, à disponibilidade de leitos nos hospitais, às políticas públicas em vigor, e assim por diante. É como se cada uma dessas características fosse um botão numa mesa de som, que os pesquisadores podem ligar, desligar, e aumentar ou diminuir de intensidade, para produzir diferentes tipos de música.
Do ponto de vista epidemiológico, a população é dividida em quatro grandes compartimentos: suscetíveis, expostos, infectados e recuperados. Cada um desses grupos é, então, subdividido em camadas menores, como infectados sintomáticos, assintomáticos, isolados ou não isolados, hospitalizados ou não hospitalizados, e por aí vai. Do ponto de vista demográfico, cada um desses compartimentos é também dividido por faixa etária e segregado em “matrizes de contato” relacionadas a trabalho, escola, família e outras atividades coletivas, que geram risco de transmissão do vírus.
“Adicionamos o máximo possível de camadas para tentar refletir a complexidade real da doença”, explica Caroline, de 28 anos, que fez graduação e mestrado no Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP. O modelo do Observatório é desenvolvido em parceria com um consórcio internacional de modelagem epidemiológica da Covid-19 (CoMo) liderado pela pesquisadora Lisa White, da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Plano de saída
Nesse primeiro experimento, os pesquisadores brasileiros modelaram apenas esses dois cenários extremos: com e sem isolamento social. Mas também é possível simular cenários mais diversificados — por exemplo, prevendo a reabertura apenas do comércio, apenas das escolas, ou de qualquer outra atividade específica; com lockdown, sem lockdown; e envolvendo diferentes estratégias de testagem e quarentena.
“Precisamos de um plano para sair do isolamento, e isso precisa ser planejado com base em evidências científicas”, afirma Kraenkel ao Jornal da USP. Ainda que os modelos não possam fazer previsões exatas de números ou datas, eles podem dar uma boa visão do que deve acontecer e o que pode ou não funcionar em determinadas situações. “Nenhuma modelagem séria se presta a fazer previsões exatas de nada. Os modelos são sempre uma simplificação da realidade”, pondera o físico.
Não há previsão de que o isolamento social será cancelado em São Paulo a partir de 1 de junho, nem os pesquisadores estão propondo que ele seja mantido integralmente até o fim do ano — são apenas cenários hipotéticos.
“Estamos aprimorando o modelo para simular cenários de saída”, diz Caroline. “Isso tem que incluir testes, rastreamento de contatos, quarentena ou outras medidas. Mesmo se fizermos um lockdown rígido agora, ao voltarmos para a ‘vida normal’ um novo pico surge. Então temos que planejar essas outras medidas que ajudem a controlar a doença.”
O fator mais imprevisível nessas equações é sempre o comportamento humano. Por exemplo: como as pessoas irão reagir a uma determinada política pública, e até que ponto elas irão cumprir, de fato, o que aquela política determina? “Mesmo que todos os mecanismos da doença fossem totalmente conhecidos, a eficácia das intervenções depende muito do comportamento social”, diz Caroline.