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Finlândia, o país onde tudo é verdade (até Papai Noel)

Rio de Janeiro - A Casa da Finlândia, aberta na manhã deste sábado, na Casa França-Brasil, centro da capital, tem como atrativo principal um Papai Noel da Lapônia. (Tomaz Silva/Agência Brasil)

Na Finlândia, as pessoas sempre acreditam que os outros estão sendo honestos o tempo todo; a confiança está implícita, a não ser que se prove o contrário.

Era dezembro, e eu havia acabado de chegar a Helsinki. A neve recente cobria as estradas, e eu me protegia do frio freneticamente — luvas, chapéu, cachecol. Me dirigi à estação de trem, procurando um chip de celular finlandês e entrei em vários quiosques e lojas para encontrar a melhor opção.

De repente, percebi que havia deixado meu chapéu em algum lugar e voltei pelo mesmo caminho, extremamente frustrado. Olhei dentro das lojas, fiz gesto de alguém vestindo um chapéu, perguntei se alguém o havia visto. Finalmente, vi meu chapéu no topo de uma pequena árvore de Natal no caixa de um dos quiosques e o peguei abrindo um sorriso.

Aquilo me levou a uma das minhas primeiras observações sobre a Finlândia: a de que os finlandeses são uma gente muito honesta.

Durante minha visita, aos poucos descobriria que a honestidade é muito valorizada na sociedade daqui e é a base de qualquer interação: as pessoas partem do princípio, o tempo todo, de que todos são honestos, e a confiança está implícita até que se prove o contrário.

“Ser honesto é uma característica da cultura finlandesa — pelo menos se compararmos com outras culturas”, diz Johannes Kananen, professor da Escola Sueca de Ciência da Universidade de Helsinki.

“Em inglês, existe um ditado que diz que a verdade é tão valiosa que deve ser usada com moderação. Mas, na Finlândia, as pessoas falam a verdade o tempo todo.”

Meu episódio com o chapéu não foi, de maneira alguma, raro, já que na Finlândia objetos perdidos parecem sempre voltar às mãos de seu dono.

“É um hábito muito peculiar aqui, deixar luvas perdidas sobre as árvores”, diz Natalie Gaudet, que trabalha na Universidade de Aalto, explicando que isso faz com que seja fácil de vê-las à distância.

“As crianças estão sempre perdendo luvas, e as pessoas tendem a pendurá-las numa árvore próxima, para que quem as tenha perdido possa encontrá-las na volta.” Numa sociedade em que a honestidade está implícita, todo mundo entende que apenas o dono do objeto perdido irá pegá-lo.”

Anos atrás, a revista Reader’s Digest fez um “Teste da Carteira Perdida”, em que seus repórteres “perderam” 192 carteiras em cidades ao redor do mundo. Cada carteira continha US$ 50, com informações de contato, fotos de família e cartões de visita. Onze de cada 12 carteiras deixadas na capital da Finlândia foram devolvidas a seus donos, fazendo de Helsinki a cidade mais “honesta” entre todas testadas.

O que faz da Finlândia um país tão honesto?
O Estado finlandês não é uma criação muito antiga. Durante séculos, o que é hoje a Finlândia esteve sob o domínio do Império Sueco. Enquanto o sueco era a língua da elite, o finlandês acabou sendo associado às classes populares, o campesinato e o clero. Foi apenas em 1809 que a Finlândia obteve status de autonomia de Alexandre 1º da Rússia, na Guerra Finlandesa, e tornou-se o Grão-Ducado da Finlândia, predecessor moderno do que hoje é a Finlândia. Foi aí que uma forte identidade finlandesa começou a ser construída, e o finlandês começou a prosperar.

Urpu Strellman, agente literário em Helsinki, diz: “Foi criada uma imagem, um estereótipo dos finlandeses como austeros, modestos, que trabalham duro, pessoas obedientes a Deus que superam tempos difíceis, abraçando qualquer coisa que o destino lance sobre eles. Esses são aspectos que se relacionam de forma muito próxima com a honestidade.”

A vasta paisagem rural, combinada com os invernos escuros do Ártico, exigia a adoção dessas atitudes se a Finlândia quisesse se erguer. O termo finlandês “sisu” descreve o conceito de coragem, resiliência e robustez que foi construído dentro da identidade e características culturais nacionais.

Além disso, uma vez que a Finlândia separou-se do reino sueco, o país foi capaz de estabelecer uma Igreja Luterana Evangélica e uma ética protestante.

No livro On the Legacy of Lutheranism in Finland (Sobre o Legado do Luteranismo na Finlândia, na tradução livre para o português), Klaus Helkama e Anneli Portman examinam as raízes protestantes do valor finlandês da honestidade, que eles dizem ter nascido de atividades missionárias protestantes centradas na educação em massa e na impressão em massa de manuscritos — o que, por sua vez, trouxe autorreflexão e levou à ativação da honestidade. A igreja luterana na Finlândia é uma das maiores do mundo.

Essas qualidades estão agora profundamente enraizadas na cultura finlandesa, diz Kananen. “Veracidade e honestidade são altamente valorizadas e respeitadas.”

Vergonha após escândalo
Kananen cita o exemplo do escândalo que envolveu esquiadores finlandeses quando o país recebeu o Campeonato Nórdico de Esqui FIS, em 2001. Seis atletas finlandeses de elite foram pegos no exame antidoping e desclassificados. O escândalo foi coberto pela imprensa nacional como uma questão de vergonha pública, pois havia um sentimento de constrangimento coletivo no país.

“Para os finlandeses, a pior coisa do escândalo de doping não foi, entretanto, o escândalo em si”, diz um artigo publicado pelo The International Journal of the History of Sport. “A pior coisa foi que, juntamente com a imagem de honestidade no esporte em geral, o mito do finlandês honesto e trabalhador despencou.”

“Foi uma questão de orgulho nacional”, disse Kananen. “Em comparação, na Noruega, quando uma de suas esquiadoras foi pega no antidoping, o país inteiro a defendeu e queria que sua punição fosse a mais leve possível.”

Realmente, os finlandeses têm muito orgulho do alto nível de confiança social presente em sua sociedade, o que é um indicativo da percepção de que as pessoas acreditam que os outros estejam agindo honestamente.

“Na Finlândia, o Estado é um amigo, não um inimigo”, afirma Kananen. “O Estado é visto como algo que age para o bem coletivo — então, autoridades públicas agem em defesa do interesse de todos. Há um alto nível de confiança — nos outros cidadãos e nas autoridades, incluindo a polícia. Os finlandeses também são contribuintes satisfeitos. Eles sabem que o dinheiro dos impostos é usado para o bem comum e que ninguém vai trapacear na cobrança de impostos.”

Com frequência, porém, tudo é uma simples questão de tamanho. Gokul Srinivasan, engenheiro de robóticas e empreendedor que vive em Helsinki, explicou que numa comunidade pequena, se alguém é pego mentindo uma vez, a pessoa não será mais considerada de confiança.

Embora a Finlândia seja três vezes maior que a Inglaterra, o país tem apenas um décimo da população — com a maioria de seus 5,5 milhões de habitantes concentrados em centros urbanos no sul do país. Como resultado, há uma boa chance de que pessoas numa área específica já se conheçam.

“Se um finlandês considera que você não inspira confiança, você deveria considerar que essa ponte não existe mais, e isso leva a que outras pontes também deixem de existir”, diz Srinivasan. “Eles não costumam falar mal de você, mas se alguém pedir uma referência, isso será um problema.”

Fiquei pensando que essas parecem ser ideias bastante pesadas para um país que foi recentemente eleito o “mais feliz do mundo” pelo terceiro ano seguido.

Quando cheguei à Finlândia, estava ansioso para ver como esse nível de “felicidade” se manifestaria. A felicidade, afinal, está conectada à honestidade: num relatório publicado pela Associação Americana de Psicologia, um estudo estabeleceu ligações entre melhoras em saúde mental e física e a prática de dizer a verdade.

Prestativos e diretos
Deixando a honestidade de lado, a suposta felicidade da Finlândia certamente não era óbvia. Para mim, os finlandeses foram prestativos, mas sem interferir, calorosos, mas estoicos (pouco ligados a paixões ou desejos), mas não bastante expressivos. O que era aparente, no entanto, foi seu estilo direto de comunicação, algo que Strellman atribui a seus valores básicos de honestidade e franqueza.

“Nós somos ruins em bate-papos — é sempre melhor ficar quieto do que conversar sobre algo sem sentido”, disse ela. “Há uma forte ideia de que você precisa falar as coisas como elas são, não fazer promessas vazias e não tentar maquiar as coisas. Os finlandeses apreciam a franqueza mais que a eloquência.”

Os finlandeses levam suas palavras a sério, então cada palavra realmente quer dizer aquilo que ela significa. Num estudo do etnógrafo Donal Carbaugh, ele explica como declarações superlativas soam presunçosas para os finlandeses. A regra número 1 da comunicação finlandesa, escreve ele, é estar comprometido com o que você diz.

Kananen concorda: “Os finlandeses tendem a levar expressões bastante ao pé da letra. Então, se você diz que você comeu o melhor hambúrguer da sua vida, isso pode levar a uma conversa em que você fala sobre todos os hambúrgueres que você já comeu e os exatos critérios para julgar qual deles era o melhor. A não ser que você possa provar que era objetivamente o melhor hambúrguer, você é visto com uma certa suspeita e, sim, certamente presunçoso.”

Claro, também existe o lado negativo disso. “O lado bom dessa cultura é uma tendência a permitir que apenas uma ‘verdade’ exista por vez, sobre muitas coisas, como a economia, saúde, tecnologia”, diz ele. “Essa é a verdade que podemos ler nos jornais e o que os especialistas nos dizem. Não somos muito bons em tolerar diversidade de opinião, já que existe uma crença bem enraizada de que existe apenas uma verdade.”

Na maior parte dos casos, porém, a honestidade realmente acaba sendo a melhor política, como os finlandeses devem lhe dizer — embora leve um certo tempo para se acostumar.

Naquela mesma semana, eu e um amigo finlandês fomos a Turku, uma cidade no sul do país, onde passeamos pelo centro em busca de boas cervejas. Fomos a diferentes bares, deixando nossos casacos nos ganchos colocados na entrada. Enquanto bebíamos e conversávamos, não conseguia parar de dar umas olhadas para o meu casaco. Não havia travas de segurança, e ninguém estava cuidando deles.

“Não se preocupe”, meu amigo me lembrou, no que pode ter sido a centésima vez. “Ninguém vai roubar seu casaco.”

Finalmente, comecei a acreditar.

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