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Lago Oeste

Flora, a menina sardenta que voltava e tricotava

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Reprodução

Lucinda, mal pisou no chão frio de vermelhão, se arrependeu de ter colocado o despertador para tão cedo. A franja caída protegia os olhos da luminosidade, que atravessava sem piedade a janela de vidro do seu quarto. Olhou de relance e, assustada, percebeu um vulto andando apressado pelo jardim ali na afastada chácara do Núcleo Rural Lago Oeste. Tentou, mas não conseguiu vislumbrar o rosto.

Intrigada, calçou o chinelo de tricô e correu, mas não encontrou viva alma no local. Apenas o amplo gramado, onde se destacavam uma mangueira e um enorme abacateiro, além das roseiras e hortênsias. Voltou os olhos para o alpendre, onde costumava ficar Mel, a cadela de cor trigueira, morta há não mais de um ano. Talvez impressionada, imaginou ter ouvido o último uivo de lamúria da cachorra, que havia sido picada por uma cascavel.

Tornou a olhar para o amplo gramado. Balançou a cabeça de um lado para o outro, até que desistiu e entrou. Foi direto para a cozinha, onde já se encontrava Flora, tão ruiva e sardenta como uma criança de seis anos pode ser. A menina se virou e abriu um amplo sorriso ao ver a mãe. As duas se abraçaram. Em seguida, Lucinda preparou o café da manhã.

Flora parecia adorar cada tipo de biscoito que a mãe lhe preparava. A geleia era tão generosamente espalhada pelo pão quentinho,  que escorria sem cerimônia pelos cantos. As faces rosadas da pirralha ficavam lambuzadas de felicidade.

Da cozinha, passavam para a sala, onde Flora tentava aprender cada ponto de crochê. De tão esperta que era, logo começou a fazer amplas colchas, que atraíam fregueses vindos de bem longe até o sítio, que ficava grudado ao pé da serra. Horas e mais horas, até que a luz do dia se findava por completo, obrigando Lucinda a acender as lamparinas. Não tardava, as duas adormeciam abraçadas.

Na manhã seguinte, a rotina prosseguia. Lucinda, o jardim, Flora, o café da manhã, as colchas, lembranças cada vez mais distantes da cadela Mel.  A ciranda rodava como na última volta, repleta de uma nota só. Até que, certa manhã, quando as duas ainda estavam fazendo o dejejum na cozinha, foram despertadas daquele transe de felicidade por um incessante bater de palmas vindo da porteira.

Lucinda foi até o alpendre, de onde pode avistar um jovem casal, que parecia perdido. Pelo menos ela nunca havia visto aqueles dois, que logo se apresentaram. Eram da cidade e estavam fazendo trilha pela região. Pediram um pouco de água, Lucinda os convidou para entrar.

Já na cozinha, foram servidos pela anfitriã, que os apresentou à filha. O casal olhou para a cadeira, onde Flora costumava se sentar. A menina lhes sorriu. Os jovens beberam mais que depressa a água, agradeceram pela hospitalidade e se afastaram até quase a porteira. Ao se virarem para se despedir pela última vez, avistaram um pequeno monte, de onde aparecia uma lápide. Nela estava escrito: “Saudade eterna da minha amada Flora”.

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