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Fogo que destrói nem sempre recompõe as cinzas

“Aprendi que as pistas só fazem sentido se conseguirmos estabelecer relações entre elas. Fênix-Notre Dame… Seriam mesmo apenas coincidências?”

O homem vivia nas ruas e eu pouco sabia dele. Sempre o observara, mas nada de pintar a faísca. Passou a ser para mim: o homem-sem-história.

Naquela manhã, um incêndio destruíra a Ópera La Fênice, construída há dois séculos em Veneza. No Brasil, A TV mostraria à exaustão a tragédia da menina Raquel, 9 anos, encontrada morta, estrangulada, dentro de uma bolsa, na rodoviária de Curitiba.

À noite, no Jornal Nacional, acompanho o discurso da vitória de Barack Obama, o primeiro negro eleito presidente dos Estados Unidos da América. Adormeço. Sonho com o homem-sem-história e acordo com o rádio replicando as trombetas do pastor Abravanel:

“A chama fumegante… a chama que queima e salva a alma… Arrependei-vos, pecadores!”

Penso no homem-sem-história, nas imagens desconexas do sonho/delírio, mas o que fica mesmo são as pragas de fogo do Abravanel.

Café requentado, pão amanhecido e um cigarro antes do câncer fatal.

Fecho o cômodo/ostra e saio para a rua em busca de fatos que inspirem um texto qualquer.

“Não, não posso passar pela vida repetindo a triste saga daquele homem-sem-nome, sem passado, sem história”.

Entro na Biblioteca Municipal e pesquiso num site sobre Veneza. Em dois séculos, três sinistros. Praga fatal de fogo, destruição e reconstrução eterna na cidade que flutua sobre as águas.

La Fênice/Fênix, a casa de espetáculo queimou por completo. Fênix, a ave mitológica grega que quando acuada queima sob o sol e do pouco que sobra de seus restos mortais, surge milagrosamente uma espécie de verme que se desenvolve em segundos, gerando uma nova ave, idêntica à Fênix. Daí o mito: o renascer das próprias cinzas.

Saio do site da Fênix e entro em Notícias do Minuto. No discurso de Obama, a frase lapidar, “Nós somos um; somos o mundo! Sim, nós podemos!”. Noutra página, nova manchete: “Bolsa do caso Raquel foi comprada na Loja Fênix”. Penso não passar de coincidências. Aprendi que as pistas só fazem sentido se conseguirmos estabelecer relações entre elas. Fênix…. Seriam mesmo apenas coincidências?

Deixo a Biblioteca e enveredo pela ruela até o Bar Vesúvio. Lá encontro Jorge Cabeça, morador de rua e excelente papo. Fila um cigarro e vai direto ao assunto:

“Professor, o pobre do Chaves dormia debaixo da marquise e tacaram fogo nele, meu! Ninguém sabe quem… nem teve tempo de acordar! Morreu sozinho; feito um porquinho assado!”

Pobre diabo, o Loco Chaves.

Pago a cerveja e ganho a rua. As notícias girando em minha cabeça: Veneza, Curitiba, Raquel, Obama, Loco Chaves, Fênix… Záz!

Para fechar a combustão, Paris: violento incêndio queima a Catedral de Notre Dame. Templo histórico da humanidade. Cinzas.

Fim da tarde; giro a chave e estou de volta ao cômodo/ostra. Abro o gás do fogão e penso na história do homem-sem-história. Como seria o seu passado? Seus sonhos, amores, desventuras? Teria ele vivido em Veneza ou conhecido a Notre Dame? Talvez tenha passado pela rodoviária de Curitiba segundos antes do corpinho da menina Raquel ter sido abandonado debaixo daquela escada?

Decido mandar tudo pelos ares. Apanho o isqueiro, risco a pedra e nada. Risco outra vez: nada! Nenhuma explosão. A cozinha ainda está ali; e eu continuo irremediavelmente vivo. Verifico o botijão. Sem gás. O espelho da janela reflete meu riso de canto de boca, patético e impotente.

Tu és incompetente até para fechar a cena, hein… Mequetrefe! Vives com o cérebro em chamas e ainda tens aquele sonho de menino de um dia tornar-se bombeiro…Merda!

Ligo o rádio e o pastor Abravanel berra e baba:

“O espírito humano é indestrutível e sua capacidade de renascer das cinzas é infinita… Fênix… Fênix… Notre Dame… Arrependei-vos, pecadores!…o fogo escarlate purificará!”.

Desligo o rádio e ligo a TV, implorando o sono hipnótico dos raios catódicos. Acomodado no pequeno sofá, aos pés da cama, o homem-sem-história balbucia palavras desconexas, em delírio/transe.

Digo-lhe a saudação-código:

“Boa noite, parceiro.”

Depois, atônito, grito para a grande ave acocorada no canto da pequena sala:

“Ei, cuidado Fênix!!!”.

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