Luis Carlos Alcoforado
O privilégio sempre esteve presente na formação e na vida nacionais, sob o mascaramento de complexa engrenagem social ou jurídica, quase desconhecido ou despercebido.
O mais idealista e utópico dos princípios constitucionais, aquele que consagra, formalmente, a igualdade, sofre constante desintegração do próprio Estado, em ação do legislador, do administrador e do juiz.
Desconecta-se da realidade a premissa de que, no Brasil, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
A Constituição Federal renovou-se para se tornar caduca!
A igualdade não passa de exercício de retórica, principalmente quando a teoria pretende almofadar o desconforto do tratamento desigual e discriminatório, mais diagnosticado e vivido pelo povo do que a práxis e a resposta isonômica que o Estado deveria respeitar, como compromisso do constituinte.
O princípio da igualdade ou da isonomia é mero diletantismo acadêmico no corpo do funcionamento das instituições brasileiras.
É assertiva a constatação segundo a qual o princípio da igualdade funciona como dopamina na construção de modelo constitucional ideal, mas com insuficiência de dosagem para animar a realidade de suas virtudes.
Tudo no Brasil é muito desigual!
Na saúde, na educação, no trabalho, na cultura, na segurança, no capital, na justiça, em nada em que, verdadeiramente, interessa a todos, sem discriminação de qualquer natureza, subsiste a igualdade, quando se descola a questão do plano teórico para o empírico.
Há dificuldade para identificar os meios segundo os quais se guarnece a supremacia do princípio da igualdade, numa sociedade habituada a distribuir desigualdade.
E mais: uma sociedade que tolera, inclusive formalmente, a desigualdade, a discriminação, o privilégio, em corpo de normas jurídicas, que, deveriam estar alinhadas com a Constituição Federal.
Para a maioria do povo brasileiro o direito ao princípio da ampla defesa, à prestação jurisdicional, se inicia no primeiro grau, com juiz singular.
No entanto, para uma minoria, o regime jurídico se abre para dialogar com o privilégio, com a discriminação, com a proteção, em flagrante ruptura com o princípio cardeal da igualdade de todos em face da lei.
A uma minoria de cidadãos se assegura foro especial, sob o fundamento de que conserva status, ainda que temporário ou transitório, funcional, porque faz parte da elite pública, que cumpre papel estatal.
O curioso é que coube à própria Constituição da República castigar o princípio da igualdade de todos, ao segregar os jurisdicionados, em castas privilegiadas e em castas desprivilegiadas.
E, sinceramente, a Constituição Federal mostrou-se caridosa em excesso, ao ampliar o rol de pessoas que fazem jus ao foro dos privilegiados.
Há duas categorias de cidadania, quando se fala em Justiça!
É categórica a premissa de que a Justiça fala línguas diferentes, em rituais que tratam dos que têm poder e dos que não têm poder.
Aos que têm poder se oferecem tratamentos especiais, em cortes suntuosas, pejadas de ritualismos, que sacrificam a transparência de suas decisões, quando tudo já não se acha alcançado pela morosidade do processamento e do julgamento, para o reconhecimento da extinção da punibilidade, pelo efeito articulado da prescrição.
Aos que não têm poder, à falta de status jurídico-político, o direito à prestação jurisdicional se exerce, quando é possível invocá-lo, com as dificuldades e empecilhos reservados aos que carecem de força na representação de seus legítimos interesses.
O foro especial, por prerrogativa de função, é, a rigor, uma manipulação legal, fruto de interesses que se conjugam e se confundem nas figuras do legislador e do destinatário do privilégio.
O destinatário do privilégio é o próprio criador do foro especial, onde se crer esconder o ânimo da impunidade.
Logo, se invocados o princípio da eticidade, da moralidade e da legitimidade, o foro privilegiado seria fulminado, não só execrável pelos cidadãos que querem ser tratados com isonomia, mas pela evidência de que há o exercício legislatório em causa própria.
No Brasil de tantos insucessos na construção de uma Justiça imparcial para a cidadania, a melhor solução seria abolir o foro especial, de tal sorte que o cidadão pudesse acreditar que todos se consideram merecedores de tratamento sem discriminação.
Ao final, o poder continua no poder de quem se estimula a legislar em causa própria, com repercussão em quem não faz lei, mas a aplica, como blindagem aos erros do constituinte que enganou a todos, inclusive a história.
O foro especial é o cemitério em que se enterra a Justiça.