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Conto dos Pampas

Frederico, Hans, corpos e charque com chimarrão

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto de Arquivo

A história, contada numa noite de Lula Cheia na varanda de um apartamento da Asa Norte, neste inverno friorento de Brasília, veio de longe, onde frio, aliás, faz parte da rotina e da agenda turística. Quem ouviu, diz ter adormecido na mesma noite em meio a pesadelos. Vamos a ela:

Sempre acordava com calafrios, que poderiam ser facilmente confundidos com um dos sintomas mais característicos da malária. Todavia, era tão gaúcho, que nem havia saído do Rio Grande do Sul. Se bem que, por uma ou duas ocasiões, botara as galochas na fronteira com o Uruguai.

Frederico Fischer era casado, mas a esposa e os filhos haviam se mudado há tempos para Porto Alegre, de onde nunca mais tiveram disposição para sequer uma visita ao longínquo rincão. Ele, por sua vez, preferia a solidão e, por isso, não se lembrava da última vez que tentou pegar o ônibus para a capital. Nunca foi. Preferia o ambiente rural da sua pequena estância.

Aqueles poucos mais de 50 anos pareciam começar a pesar nos largos ombros de Frederico. Com a enxada nas mãos calejadas, ele cambaleou para o lado e deixou o enorme corpo avermelhado pelo sol tombar. Caiu de bunda, quase ao mesmo tempo em que apertou seus olhos azuis. Tão azuis, que alguém poderia duvidar que eram reais.

Um redemoinho levantou poeira bem na fuça de Frederico, que não se espantou. Ele já havia passado por isso algumas vezes. No entanto, todas elas aconteceram quando ele ainda era um menino gorducho que ficava assombrado com as histórias contadas pelo avô. Histórias sobre as trincheiras da Grande Guerra. Corpos mutilados em meio a tanta lama. A fome fazia os homens lutarem contra os ratos por um naco de carne, mesmo que essa carne fosse a de um companheiro abatido pelo fogo inimigo.

Despertado do seu devaneio, Frederico se levantou. Estapeou a calça para expulsar a poeira. Rumou para a varanda da casa. Despejou água fervente sobre a cuia, sentou-se na cadeira de balanço, degustou o chimarrão. Pensou no que faria no resto daquela tarde. Nada lhe veio à cabeça, a não ser a saudade da família.

O pensamento de Frederico, no entanto, foi interrompido pelo cavalgar suave do cavalo que se aproximava, carregando no lombo um vizinho, o Hans. Tão alemão quanto Frederico, Hans era pouca coisa mais alto.

Cumprimentaram-se quase em silêncio, dividiram a bebida gaúcha. O sol já havia se posto, quando Frederico principiou a conversa.

– Sinto falta da Frida e dos guris.

– Acontece. Fez o charque?

– Tá ali.

Hans se levantou, cortou um bom pedaço da carne, fatiou-a na travessa de madeira sobre a mesa da cozinha. Voltou para a varanda e a ofereceu ao anfitrião. Mastigaram, devoraram tudo com tanto gosto, que pareciam animais famintos. Adormeceram ali mesmo, apesar da previsão de geada.

Frederico foi o primeiro a acordar. Encolhido de frio, passou pela cozinha sem notar as várias peças de carnes penduradas em ganchos. Foi até o quarto, pegou dois cobertores, um para ele e outro para o amigo. Entretanto, passando novamente pela cozinha, ficou estarrecido. Diante dos seus olhos estavam pendurados os corpos desmembrados da sua mulher e dos seus filhos.

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