Grosso
Futebol de moleque tem regras próprias até pro dono da bola
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emPara começar, não tem esquema tático, nem técnico, nem juiz. Também não tem campo, só um trecho de várzea ou uma rua, com cartazes para os automóveis por favor desviarem (no Brasil risonho dos anos 50, muitos o faziam). Mas tem capitães.
Cabe-lhes uma tarefa fundamental: montar os times, escolhendo, alternadamente, os jogadores, dos melhores – os que driblam mais, ou chutam mais forte – até os pernas-de-pau, a raspa do tacho. Daí a importância do sorteio, quem escolhe primeiro fica com o segundo melhor (o primeiro, claro, é ele próprio, o capitão) e vai decrescendo, até o penúltimo mais ruim. O infeliz que escolhe em segundo lugar fica, no máximo, com o terceiro melhor e segue ladeira abaixo, até o mais grosso.
Juca, 10 anos, baixinho e gordinho, foi o penúltimo a ser escolhido. Nem ligou, estava feliz, era sua primeira partida entre os meninos grandes, que são derrubados, levantam sem chorar e continuam disputando a bola. E havia pelo menos um garoto pior que ele: o último selecionado foi o quatro-olho – um menino ainda menor e mais gordo, que via o mundo por trás de óculos de fundo de garrafa.
Antes do pontapé inicial, um momento mágico: a convocação do avatar futebolístico. Algo feito em silêncio, com emoção, unindo cada moleque a um deus dos estádios. “Eu sou Dida”, afirmou Juca para si mesmo. O que permite conhecer o time do coração dele e datar o jogo em algum momento de 1955-1956. Afinal, Dida fora um dos heróis da conquista do tricampeonato carioca pelo Mengão em 1955.
O jogo começou e ninguém passava a bola para Juca. Ele até que tentou disputá-la, mas levou um drible desmoralizante e desistiu. Ficou vendo a partida – e teve que reconhecer que o quatro-olho batia um bolão. Apesar de gordo, corria o campo (a rua) inteiro, tentava driblar meninos maiores e mais fortes, muitas vezes conseguia… “É, os deuses da bola o escolheram”, pensou filosoficamente. (Mentira deste escriba, moleques de 10 anos em Niterói não pensam filosoficamente. Mas passemos.)
Lá pelas tantas, Juca estava meio distraído na zaga, perto do gol do seu time, quando os deuses da bola a colocaram junto a seus pés. Levou um susto – que virou terror quando viu o quatro-olho, com um sorriso de triunfo, iniciar uma corrida em sua direção, para roubar-lhe a pelota e marcar um gol.
Cheio de medo, Juca sentiu-se encolher, até se tornar um garotinho de 7 anos. E viu o outro se transformar num cavalão de 13 anos.
“O menino grande quer me machucar”, pensou. “Vou chutar”. Fechou os olhos e mandou vara.
– Grosso! – berraram os jogadores dos dois times, unidos no desprezo a ele.
Juca percebeu, horrorizado, que pegara mal na bola e chutara contra seu próprio gol. Para sorte dele, a redonda não entrou, tirou tinta da trave – na verdade, das camisetas amontoadas que marcavam as metas.
“É, tive azar (foi grosso pra dedéu, escarneceu uma vozinha interior), mas pelo menos não marquei contra”, justificou para si mesmo. Envergonhado, caminhou até perto da área do outro time e ficou por ali, no maior impedimento. Só que futebol de moleque não tem juiz, muito menos bandeirinha. E foi ali, enquanto se ensaboava na banheira, que os deuses da bola lhe deram nova oportunidade, fazendo a pelota rolar até seus pés.
– Deixa comigo! – berrou, surpreendendo a si próprio e aos companheiros. Dessa vez não fechou os olhos. Preparou o chute – nada de trivela ou peito do pé, foi de dedão mesmo. E mandou vara.
Quer dizer, quase. Juca furou, chutou o ar e, desequilibrando-se, caiu com a bunda gorda no chão. Levantou-se todo esfolado, com o rosto vermelho de vergonha, ao coro de “Grosso! Grosso!” entoado por todos, até por alguns adultos que haviam parado para ver o jogo da garotada. Foi deixando o campo (a rua) de mansinho, sem que ninguém notasse a sua ausência. Ou se importasse com ela.
E nunca mais, nem mesmo quando estava no ginásio (no Ensino Fundamental) e se tornara mais hábil – menos grosso pouquinha coisa, insistiu o grilinho falante – no futebol, esqueceu aquele seu primeiro jogo entre os meninos grandes.