Diagnóstico atual
‘Gado’, o desconhecido eleitor de Bolsonaro rumo ao brejo
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emApontam a pesquisas: 61% da população desaprova o governo. Quando perguntados em quem não votariam de jeito nenhum, Bolsonaro aparece com 54%. Seiscentos mil cadáveres depois, um ministério de indigentes morais e intelectuais, uma coleção de insultos e constrangimentos a que toda a nação foi submetida dentro e fora do Brasil, dão aos números sentido e tornam inevitável a derrota do genocida.
Mesmo assim, ele permanece com cerca de 19% de eleitores que a despeito da carestia, discurso de ódio, miséria e fome ainda dizem nele votar. Quem é esse eleitor? Por que age assim? Tentarei, neste artigo, explicar.
Porém, entenda: não falamos aqui de políticos que trocam apoio por verbas secretas. Nem de emissoras chapa branca que se beneficiam financeiramente com a bajulação. Também não falamos daqueles que apenas votaram nele. Afinal, quem nunca errou por má informação? A maioria desses eleitores, diante das primeiras canalhices / insanidades já se arrependeu amargamente e assume isso. Falaremos, aqui, de quem diz não se arrepender. Especificamente dos que nada ganham e muito falam. A base desta trágica pirâmide: o gado.
Rei do Gado
Sabe aquele amigo, conhecido ou familiar que desconsidera as rachadinhas e até baba ao defender a “familícia bolsonalha”? Aquele que vocifera contra a “esquerda” sem saber direito o que significa o conceito de direita e esquerda na política? Aquele que ataca a vacina e uso de máscara? Agora, busque na memória, sobre o que falava este seu amigo, familiar ou conhecido antes da última campanha presidencial. Há quatro anos, quando você o encontrava em festas de fim de ano ou casamentos, no bar, em funerais, qual era o assunto?
Aposto que sei: ele (ou ela) fazia parte daquele exército que sobre questões sociais silenciava, mas possuía teses e argumentos mil sobre futebol ou telenovela. O Bolsonarismo mobilizou esta gente indiferente à política partidária. Os insuflou de informações superficiais e, assim, possibilitou que enfim pudessem se incluir em discussões de “gente grande” (aliás é muito engraçado acompanhar as “teorias” desses caras no zap zap. Eu recomendo)
Gente normalmente acostumada somente com futebol e telenovela, onde a lógica é bem simples. Está definido claramente quem está “do seu lado” e quem é inimigo. Seu time ganha, você comemora; perde? Você discute explicações. Sempre assim. Nas telenovela das 8 você torce para o casal bonzinho terminar junto e para os vilões, que querem separá-los, se darem mal. Eles estão bem identificados no enredo e é claro e fácil entender quem é quem.
Política não é assim. Os arranjos são difusos e muda-se de posição (“time”) de forma sutil ou rápida demais. A política obriga o indivíduo a constante reflexão e exercício de raciocínio. Exige-se o acompanhamento crítico de meios de comunicação minimante profissionais. Isso dá trabalho. Política é área difícil. Exige que se perca a preguiça de ler, exige seguir meios fidedignos de informação. Dá mais trabalho que ser dono da verdade no zap zap.
Portanto, a “democratização” da discussão política, que leva torcedores de futebol aos grandes temas nacionais, teria sido muito bem vinda se representasse uma “politização” das massas. Entretanto, não foi isso que ocorreu. O que acompanhou o discurso de ódio Bolsonarista não foi uma conscientização política e nem sequer uma revisita ao ideário conservador. E sim uma campanha de desinformação, fake News, racismo e machismo, dirigida à massa mais ignorante, na linguagem mais fácil possível.
Ou seja, Bolsonaro não promoveu a educação dessa fatia mais estúpida do eleitorado para que ela entendesse a política. Fez o contrário: rebaixou a política ao nível da sua manada, simplificou a discussão ao nível mais rasteiro da mais vulgar pelada de várzea. Onde “eles” sempre jogam contra “nós”.
E assim, conseguiu mobilizar os que possuem feroz preguiça de pensar. O discurso simplista de Bolsonaro (como antes o discurso de Enéas e dos europeus Mussolini e Franco, por exemplo) parece querer dizer: “não precisa pensar, eu penso por você”. E forneceu um discurso binário e maniqueísta. Um “discurso miojo”: instantâneo, facilmente digerível e absolutamente desprovido de substância.
“Nós contra eles”
Para que esse público possa aderir mais facilmente, este discurso contrapõe, como no futebol, sempre dois times, à escolha do momento e ao gosto de cada rês: Comunistas X Patriotas; Esquerda X Direita; Vacinação X Imunidade de rebanho; China X EUA (na gestão Trump); Distanciamento social X Liberdade para trabalhar; STF X Governo Federal; Pacifismo X Liberdade de portar armas; Humanismo X Sectarismo.
Numa pandemia nenhuma decisão é fácil, e na vida, muitos dos itens acima não se excluem entre si na mente de qualquer pessoa bem informada. Na verdade, em discussões coloquiais no seio da família ou em qualquer condomínio ou clube de fim de semana, sempre existem mais de duas versões. Ninguém é totalmente ruim ou totalmente bom. Isso deveria ser óbvio. Mas a realidade é desossada pelo Bolsonarismo para melhor ser digerida pela escumalha que anseia não precisar pensar muito: o tiozão e a tiazona do zapzap.
Essa faixa de público se viu amparada, enfim. Firmou-se contrato tácito entre as partes: uma não precisará pensar muito. Em retribuição, se o líder roubar ou disser absurdos será defendido; se o líder fizer cocô em público, eles aplaudem. Um acordo firmado em meio à devastação amazônica e ao caos do aumento do combustível, dentre outros flagelos brasileiros.
Assim, o Bolsonarismo (com o auxílio das redes sociais) dá voz aos ignorantes. Promove a burrice como se a civilização e as grandes questões sociais não passassem de um jogo entre Botafogo e Remo. Nesta visão abestalhada, tudo o que se contrapõe ao Presidente (nós) pertence ao time inimigo (eles). Entenda-se por “eles” ciência, imprensa crítica, SUS, vacina, paz, educação, inteligência, cultura, humanização, respeito ao próximo etc etc. Tudo isso coisa de comunista, petista, chinês, cubano e venezuelano.
. Por isso, se ele (meu time) humilha alguns jornalistas e espanca outros, se diz que vacina causa AIDS, se em meio ao holocausto de mais de 600 mil cadáveres ele nunca visita hospital de campanha e nem sequer manifesta respeito pela dor das famílias (“eu não sou coveiro”), não importa.
Orgulho irracional
O eleitor bolsonalha, pensa assim: “ora, o Presidente é do meu time, por isso tenho sempre de defende-lo! O meu lema é: uma vez Flamengo sempre Flamengo! Tem mais: se eu reconhecer que ele é um imbecil despreparado e perigoso teria de reconhecer que eu fui um imbecil despreparado ao votar. Então, não me resta nada, a não ser ficar ao seu lado independentemente das obscenidades que ele diz e faz”. Isso tem lógica para você leitor? Para o muar tem. A lógica de pertencer a um time. O pobre diabo ignorante pela primeira vez pensa pertencer a algo mais que uma torcida. Às vezes, cai na real de que o cara que ele elegeu é nojento… Mas não assume isso em público porque a lógica de sua mente é a do futebol e da telenovela. Fez uma escolha e há um doentio orgulho em permanecer nela a despeito de qualquer coisa, de qualquer repugnância ou “gol contra”.
Como se assumir o erro é que fosse vergonhoso e não cometê-lo e dele não abdicar sob nenhuma hipótese. Somente essa perversão da realidade explica que pessoas que se dizem cristãs continuem ao lado de um armamentista entusiasmado. Ou, que aquele tiozão que jamais trocaria a vacina por cloroquina e não descuida no uso da máscara no lar da sua família, continue, contraditoriamente, a defender alguém que está em guerra contra as únicas medidas eficazes contra a pandemia (pense: você conhece esse cara, né? O cara que defende quando o Bolsonaro fala mal da vacina, mas corre ao SUS para vacinar toda a sua família e não quer nem saber de cloroquina, a não ser em discursos que faz nos botequins…)
(P.S. Enquanto eu escrevia este texto, nos EUA o personagem infantil Garibaldo, um boneco em forma de pássaro, apareceu na TV dizendo que tomou vacina. Passou a ser chamado de comunista por adeptos de Trump (de quem Bolsonaro e caricatura). Aqui no Brasil um menino de 9 anos foi hostilizado pela torcida do Santos ao pedir a camisa do goleiro do time adversário. Observem: em ambos os casos é a mesma lógica primária, exemplos da burrice geral a que me referi no artigo).