“É importante que eles [garimpeiros] saiam logo, quando se está dando esse espaço de tempo para eles saírem de forma mais tranquila. Aqueles que insistirem em permanecer ali, vão ser presos, né? Vão ser presos pela operação”, disse Sonia Guajajara, a líder indígena tornada ministra dos Povos Indígenas e que enfrenta uma das piores crises humanitárias indígenas nos últimos 30 anos como herança do governo Jair Bolsonaro.
Em entrevista na sede do CIR (Conselho Indígena de Roraima), em Boa Vista (RR), Guajajara disse que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem telefonado e marcado reuniões com ministros para se informar sobre o combate ao garimpo e à tragédia humanitária na Terra Indígena Yanomami.
Segundo Sonia, o presidente procura saber detalhes da atividade dos ministérios e órgãos a fim de debelar a crise. Numa das ocasiões, comentou que não pode ser só “plano, plano”, tem que haver ações práticas. Nos últimos dias o Ibama, a Funai e a Força Nacional fizeram a primeira incursão ao território, na qual incendiaram equipamentos e apreenderam material de garimpo.
Veja trechos da entrevista
Ministra, quais áreas da terra Yanomami precisam ser melhor atendidas agora? Por todos os órgãos.
Primeiro, precisa restaurar urgentemente aquela pista [de pouso] lá de Surucucu, porque da pista dependem todos os outros atendimentos. [Falta] a instalação do hospital de campanha. É a maior distribuição de alimentos. Os insumos que tão precisando chegar lá, assim como os equipamentos para perfuração de poço [d’água]. Então, a urgência lá é água potável, água pra beber, esse hospital pra garantir o atendimento de pessoas que estão vindo de outras regiões, que param ali na base de Surucucu. O pólo-base lá hoje é insuficiente, não tem estrutura nenhuma para dar conta de fazer esse atendimento. E o alimento, né? Atendimento, água e alimento, que é o que é urgente hoje ali dentro do território.
Teme que existam regiões da Terra Yanomami nas quais o socorro ainda não chegou? Você teme que existam ainda crianças desnutridas aguardando esse socorro?
Sim, há indícios de regiões de mais difícil acesso aos quais ainda não se conseguiu chegar nenhum tipo de assistência. São 36 pplos-base e, desses, cinco estão fechados, parados totalmente. Então nessas regiões ainda não está tendo nenhum tipo de atendimento e pode ser que a situação lá esteja mais grave ainda. O que nós estamos vendo hoje, das crianças que estão chegando, são de áreas onde tem pelo menos um ou dois profissionais de saúde que estão fazendo essa assistência. Então pode ser que a situação seja ainda muito mais grave.
Ministra, temos lido várias notícias como ‘Forças Armadas e Polícia Federal discutem a desintrusão da Terra Yanomami’. Os indígenas estão participando dos planos das operações de desintrusão, estão sendo ouvidos? A sra. está sendo ouvida? Não se corre o risco de ser um plano militar-policial?
É, tem, tem sim esse risco, né? Mas nós estamos intermediando, inclusive aqui, essa conversa com as organizações indígenas locais, e temos chegado assim a um entendimento que às vezes revelar o plano, que é tão emergencial nesse momento, pode vazar e dificultar a operação nesse momento. As organizações estão discutindo, estão participando de vários outros planejamentos, como acompanhamento da saúde, distribuição de alimentos, mas tem esse entendimento de que o plano operacional de retirada é mesmo atribuição da Polícia Federal e do Ibama.
Ministra, se tivesse que se dirigir aos garimpeiros nesse momento, como ministra dos Povos Indígenas, o que você diria aos garimpeiros que insistem na prática criminosa lá dentro, alguma mensagem?
Acho que a mensagem principal deve ser para quem financia o garimpo, deve ser para quem está estimulando a permanência desses garimpeiros ali dentro, deve ser para quem são os donos desse garimpo. A gente sabe que nós estamos ali hoje tentando atingir parte de toda essa cadeia do garimpo, que é a retirada dos garimpeiros. Eles também são vítimas desse processo todo. Mas é preciso, nessa operação, chegar em quem realmente é o dono. São políticos, são empresários, são os próprios donos das empresas que compram o ouro ilegal que sai daqui e que não está aqui [em Roraima]. Estão em outros estados como São Paulo, por exemplo. Há informações de que São Paulo tem essas empresas que recebem o ouro que sai de Roraima. Então é toda uma cadeia. Como que é ilegal essa exploração e tem esse caminho tão livre para chegar em todos os lugares, inclusive fora do Brasil? Então acho que nesse momento é importante essa retirada dos invasores, a retirada dos garimpeiros, mas é urgente também penalizar os verdadeiros culpados, que é quem financia, quem investe nessa estrutura do garimpo dentro do território.
Alguns garimpeiros estão saindo por conta própria. A senhora diria a esses garimpeiros que ficaram que eles devem sair de imediato logo, o que a sra. espera para o futuro do território?
O bom senso deve ser usado nesse momento para que eles saiam imediatamente. Ele [garimpeiro] sabe que é uma atividade ilegal. Eles estão ali arriscando a vida até. Então acho que é importante que eles saiam logo quando está dando esse espaço de tempo para eles saírem de forma mais tranquila. Aqueles que insistirem em permanecer ali vai ser preso, né? Vão ser presos pela operação. O quanto mais rápido eles saírem, melhor. E o cuidado também deve ser tomado agora nessa operação para não deixar nenhum para trás, nenhum pra dentro, porque é um risco para eles que ficarem, e é um risco para o povo Yanomami, para os povos indígenas que estão ali dentro. Principalmente — é uma preocupação muito grande — é com os povos isolados que têm no território. Tem ali a confirmação de duas regiões que têm presença de isolados e três ainda a serem confirmadas. A presença desses garimpeiros ali traz um risco fatal para os povos isolados.
Há informações de que esses garimpeiros entraram em contato com os indígenas isolados? Já estão juntos?
Não, próximo, estão muito próximos à área. Tem informação de que há garimpo a 500 metros da área onde estão os povos isolados, na Serra da Estrutura.
Então é mais um foco de preocupação, a sobrevivência dos isolados…
É mais um foco de preocupação porque, sobre os povos isolados, já está dado como os povos de maior vulnerabilidade do mundo. E nessa situação de invasão por minério, por madeira, grilagem, que são as principais ameaças para os povos isolados na Amazônia. Nesse caso aqui é o garimpo. A frente etnoambiental da Funai está aqui em Boa Vista, um representante da coordenação geral de povos isolados em recente contato lá de Brasília está aqui fazendo também essas conversas inclusive com o Ibama para pensar estratégias de retirada dos invasores de forma que não afete diretamente essa área ali dos isolados. E também não se permita que uma fuga de alguns garimpeiros possa ser dirigida para essa área onde eles [isolados] estão. É para cuidar para não ter um confronto.
Nesse tema também há o risco de uma invasão na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, por esses garimpeiros que estão saindo, isso preocupa também o ministério?
É, preocupa porque se não houver essa política aqui de fiscalização e até de alternativa do próprio Estado para esses garimpeiros, eles podem tentar entrar em outras áreas. Mas dentro do plano agora de desintrusão tem também já esse cuidado de monitorar, de fiscalizar por mais tempo, para evitar essa revoada desses garimpeiros para outras áreas indígenas.
No cenário mais otimista, a sra. acha que a desintrusão pode ocorrer em quanto tempo? Quantos meses, arriscaria uma data?
Eu acho que essa operação é muito grande, é grandiosa, não dá para esperar que em três meses se resolva, ou pelo menos seis meses. Porque 20 mil garimpeiros ali… É o que se estima que tem ali dentro né, pode ser que seja mais até. Os helicópteros que fazem esses voos são muito pequenos. Se vai retirar os garimpeiros, retira pouquíssimo de cada vez. A [previsão] é de seis meses para um ano para poder conseguir tirar tudo. E aí considerando também essa necessidade da permanência de uma base aqui tanto aérea quanto fluvial nas três áreas de acesso. Tem que manter essa presença aí da fiscalização da Polícia Federal.
Ministra, voltando àquele tema da possibilidade de indígenas ainda sem socorro, é uma hipótese. A Defensoria Pública da União mandou um ofício para as Forças Armadas dizendo, ‘olha, só tem dois helicópteros no momento fazendo esse trabalho de busca ativa’. A senhora acha que precisa de um reforço aéreo maior para a busca ativa, tentar descer na clareira de todos esses [locais]?
Sim, acho que precisa ser designada uma estrutura maior para essa operação. O ministro [da Defesa] Múcio está vindo aqui. Certamente que ele também vai identificar, né? Olhar, identificar o que realmente precisa para poder dar uma agilidade para essa operação. O próprio presidente Lula tem cobrado agilidade, inclusive do ministro da Defesa, e eu creio que essa vinda dele é também para identificar isso, qual é a demanda agora, qual é a estrutura necessária para dar celeridade ao processo.
Ministra, tem chegado ao seu conhecimento alguma outra área indígena que vai demandar uma emergência também sanitária, não talvez no volume atual, porque inclusive a questão geográfica aqui é diferente – mas outro grupo que vai ter uma atenção especial no campo da nutrição, da alimentação?
A gente tem recebido já também demanda do povo Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul. Estamos já com essa atenção também, esse alerta ligado ali, estamos buscando inclusive apoios de cooperação internacional, extra-Ministério, um termo de cooperação para a gente ajudar essas famílias. Além disso, nós temos a situação dos Avá-Guarani lá no Paraná, que também procuraram ajuda da gente. Eles esperam a demarcação da terra, estão lá numa área de conflito, em briga permanente com invasores ali, colonos, posseiros. Agora eles têm buscado esse apoio, inclusive pedindo esse apoio de alimentação. E os Pataxó no extremo sul da Bahia, onde ocorreu um assassinato recente. Então tem sim alguns grupos que estão agora buscando a gente, buscando esse apoio para tentar viabilizar tanto de forma emergencial, com cestas básicas, como também estão buscando muito esse apoio para poder plantar, apoio de ferramentas, de semente para produzir seus alimentos. Porque foi uma ausência de muito tempo, foram muitos anos onde a Funai não conseguiu dar nenhuma atenção para a produção, para a atividade agrícola. Os indígenas que buscam esse apoio estão enxergando assim uma outra expectativa. Estão enxergando nós, indígenas, assumindo a frente desses órgãos. Então eles criam também uma esperança de que podem ser atendidos. A gente está fazendo esse registro de quem está buscando [apoio] e prestar um plano macro para atender esses povos.
Ministra, eu estive na Casai [casa de apoio à saúde indígena] e conversei com uma profissional de saúde, ela falou que até naquele momento ainda havia cerca de sete a 10 pessoas por dia que chegavam da área ainda muito debilitadas. Vocês sabem quantas pessoas em média estão chegando ainda da área desnutridas e há um prazo para se chegar a essas pessoas que ainda estão necessitando? E que ainda estão morrendo, né?
Ainda estão morrendo. Inclusive, no dia que eu estive ali [Surucucu] teve a morte de uma criança, pediram socorro, não deu tempo de chegar no socorro e ela veio a óbito. Teve o caso de três assassinatos. Dois que foram mortos por garimpeiro, mais outro ataque a três indígenas, um morreu, o outro ficou baleado e está aqui no hospital. Então tudo no mesmo dia isso. Não tem uma estimativa de quantos chegam por dia porque é muito variado. Tem dia que chegam três, quatro, mas tem vez que chegam oito de uma vez. Esses pacientes que estão vindo das demais regiões eles chegam na base de Surucucu, fazem o primeiro atendimento com a equipe da Força Nacional do SUS que está lá e a equipe do DSEI. Eles fazem esse primeiro atendimento e daí avaliam se precisa vir pra Boa Vista ou se eles dão conta de atender lá mesmo. Então, a ideia desse hospital lá é pra evitar essa vinda para Boa Vista, que se garanta o atendimento ali mesmo. E aí depende muito agora da finalização dessa pista [de pouso]. Tudo depende agora dessa pista. Os responsáveis do Exército que estão fazendo essa reforma deram um prazo de até uma semana para ficar pronta, caso faça bom tempo [na região]. Ou até duas semanas caso o tempo não ajude muito. Então tem aí essa previsão de no máximo duas semanas para concluir a pista. É muito tempo para quem está nessa situação de gravidade como eles [Yanomami] estão, né? E eu quero conversar com o ministro Múcio sobre isso, para ver se tem como agilizar a reforma da pista. Porque enquanto não tiver isso pronto, não tem como a gente estimar o tempo de que vai melhorar esse atendimento [da saúde].
Conversei também esses dias com algumas lideranças indígenas e sobretudo com mulheres que já perderam pais, filhos, diante da situação do garimpo. Qual a mensagem que a sra. passa para uma mulher que, por exemplo, disse ‘eu não tenho mais esperança que o garimpo saia da minha terra porque eu já perdi tanta gente, tanta família e já aconteceu tanta tragédia na minha vida que eu praticamente perdi a esperança’?
Porque de fato é um desalento. A gente vê o abandono do Estado, o descaso dos órgãos, durante tanto tempo, faz perder a esperança. Eu acho que nesse momento nós estamos assim numa nova conjuntura onde tem essa preocupação, onde temos indígenas à frente dos órgãos que podem articular, que podem executar como a Funai e a própria Sesai [saúde indígena], que sente na pele também essa dor, que sente na pele esse abandono. Porque esse abandono, esse descaso com povos indígenas é histórico. A gente vai fazer, eu à frente do Ministério, vai fazer o que puder ser feito – e muito até do que não puder – vou atrás para a gente tirar o pessoal, tirar dessa situação e devolver a dignidade para essas mulheres, para esse povo.