Hoje, 31 de março, faz exatos 60 anos que o povo brasileiro despertou pisando em ovos e sendo atacado como se fosse um bando de loucos correndo atrás de um hipotético disco voador. Não era um OVNI pilotado por extraterrestres, mas um amontoado de tanques pastoreados por pessoas que ainda hoje não sabem por que estavam ali. Se soubesse, a maioria não iria. Marchariam com os “salvadores da pátria” somente os que, doutrinados pelos cascudos da caserna, profetizavam um país melhor, mais produtivo, mais igualitário e menos comunista. Como atualmente, naquele tempo eram considerados comunistas todos os que se insurgissem contra o arbítrio e contra o poder pela força. Nada mais do que isso.
A pretexto de mudar o que estava errado, destituíram um presidente eleito e durante 21 anos nos obrigaram a bater palma para maluco dançar. É verdade que, entre 1962 e 1964, vivemos um declínio econômico, agravado pela queda dos investimentos externos, pelo crescimento inflacionário, duplicação das greves e pela contração da renda per capita do povo. Se a ideia era mudar da noite para o dia, nada mudou do dia para a noite. Os ricos ficaram mais ricos e os pobres chegaram bem próximos da miséria. Pelo menos à época, o milagre econômico virou desencanto, a Transamazônica foi e ainda é um pesadelo, as favelas viraram comunidades e, o que é pior, alguns representantes dos segmentos que produziram e efetivaram o levante permanecem achando que o Brasil é uma pátria armada e não amada.
Mas nada mudou? Mudamos depois do fim da dita dura. Apesar do conservadorismo tacanho das elites improdutivas, após um logo aprendizado, o Brasil cresceu, se consolidou como país emergente e sadio economicamente, manteve intactos seus ideais democráticos e deixou de ser quintal das grandes potências. O mais relevante, o que verdadeiramente deve ser comemorado neste 31 de março de 2024, é que, com duas ou três exceções, o comando das Forças Armadas também se democratizou e parou de sonhar acordado com um comunismo que eles nunca viram ou viveram. Felizmente, oficiais generais de peso não veem mais Luiz Inácio ou qualquer outro antagônico como inimigo.
Essa proeza idiota e sem conteúdo está limitada a um bando de loucos desinteligentes, despreparados, intolerantes, fanáticos e ávidos pelo continuísmo doentio e incapaz de pensar em algo que não seja o próprio umbigo. Alguns já tiveram carreiras conceituadas. Outros chegaram a ser reconhecidos como profissionais brilhantes. No entanto, a decisão de criar e seguir um mito de ambições desmedidas pelo poder os levaram à latrina político-social em que se encontram. Como fez Jesus Cristo, é um direito do ser humano seguir o bom ladrão, aquele que ressuscitou depois de dois mandatos consecutivos e de uma bestial armação paranaense, concluída em uma encenação jurídica que gerou um cárcere para lá de benéfico.
Malhado simbolicamente no Sábado de Aleluia, Judas e seus fariseus continuam representados no Congresso Nacional, onde ele passou 27 anos sem quase nada que pudesse honrá-lo com benfeitor do povo brasileiro. Muito pelo contrário. Passados 60 anos, nossa principal mudança foi saber escolher aqueles que pensam em governar sem a preocupação de odiar. Ainda não somos uma das maravilhas do mundo. Todavia, embora tenhamos de sobreviver ao trabalho nocivo dos que desejam nos ver como párias, hoje somos capazes de enfrentar situações muito piores sem a necessidade extrema de golpes. Acabou o medo daqueles que dormem, sonham e acordam com a cabeça embaixo do quepe, mas sempre ligada na busca de um novo e mais longo período de ditadura cívico-militar.
Em 1964, o crime do mandatário de então foi discursar para cerca de 200 mil pessoas, as que supostamente se opunham à família, considerada célula básica da sociedade e que se via ameaçada pela efervescência política, particularmente pelo crescimento das teses socialistas. Na ocasião, o crime de João Goulart foi defender reformas de base, em especial a reforma agrária, propor a redução no valor dos aluguéis e anunciar um decreto permitindo a desapropriação de terras para reforma agrária na faixa de dez quilômetros às margens das rodovias, ferrovias, açudes e barragens. Foi a munição que faltava para a tomada de poder. Eufemisticamente, até hoje os mais raivosos preferem creditar a insurreição e a deposição de Jango aos apelos da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. É o mesmo que dizer que o corno se suicida com um duplo carpado invertido por causa do peso dos chifres.
É mais fácil esconder o óbvio. Como pareceu mais fácil afirmar que o 8 de janeiro não foi o início do fim do golpe imaginado pelo mito. O fato é que, independentemente do fim da Guerra Fria, alguns fardados não conseguem viver longe da ideia fixa de caçar comunistas no Brasil. Para nossa sorte, estamos distantes da África, do Oriente Médio, de parte da Ásia e da Europa e da América Central, regiões em que os déspotas brotam como tiririca do brejo. No entanto, temos as fronteiras, o garimpo ilegal, o crime organizado, os contrabandistas, os narcotraficantes e os mercenários, contra os quais não havia intenção alguma de lutar. Eles são criminosos, mas estavam fora do eixo perfumado da Avon e da Natura. Por isso, não valia a pena enfrentá-los. Era mais fácil inventar “comunistas” em um sistema plenamente democrático. Mudamos para melhor. Apesar de técnicos, a maioria dos militares de hoje sabe que entende pouco de urnas eletrônicas e de eleições. Enfim, o Haiti não é mais aqui. Para os que não enxergam a evolução civil, só tenho uma sugestão: as Óticas Diniz. Pelo menos acordamos hoje com a certeza de que uma expressiva parcela dos atuais generais pensa mais no país e menos em si mesmo.
*Armando Cardoso é presidente do Conselho Editorial de Notibras