Entre encarcerados, humilhados e mortos em países liderados por déspotas, arruaceiros, mentirosos, vendilhões e negacionistas da democracia, chegamos a quase uma centena de jornalistas. Recém-saído da juventude e foca nos anos mais duros da Revolução de 1964, discordava da maioria das frases, decretos, ordens do dia e posicionamentos dos generais de então. Foram anos duros para os chamados subversivos – eu me achava um deles, principalmente pelas citadas discordâncias. Aprendi cedo que havia determinações a serem cumpridas nas redações, sob pena do silêncio imposto de forma violenta, o famoso empastelamento de um jornal ou publicação.
Assisti alguns e ouvi falar de muitos. Empastelava-se, mas respeitava-se os profissionais. Com reconhecida inteligência e comando natural, os generais e oficiais de menor patente que propuseram, decidiram e colocaram a Redentora nas ruas podiam não gostar – e não gostavam – do que se escrevia. Entretanto, com a delicadeza dos brutos com cursos superiores, preferiam impedir, sem meios termos ou mentirinhas, que as publicações fossem lidas. Normalmente agiam rabujentamente e com a truculência combatida pelos que defendiam o bem maior de qualquer sociedade: a democracia.
Pior do que um militar acentuando no quadro de avisos da redação o que podia ou não ser pautado – e isso era comum – eram as dificuldades técnicas apresentadas pelas empresas e pelo Brasil. Com certeza não seria nada fácil para os jornalistas de ontem ambientar-se aos os costumes dos colegas de hoje. Pior para os de hoje se voltássemos aos tempos da brilhantina e das impressões por linotipia. Acho que não conseguiriam. Chegávamos às redações bem cedo e não tínhamos hora para sair. Os telefones eram coletivos e eventuais furos tinham de ser informados aos editores via orelhões ou de aparelhos disponíveis no açougue ou padaria situados no local bairro do fato.
Contudo, éramos felizes e nunca na história desse país sofremos ameaças diárias da boca ou das vísceras de um presidente da República.
Assumidamente, os generais mandavam, desmandavam, mas não mentiam ou, rodeados de meganhas, tentavam emparedar jornalistas. Diferente de nossos dias, quando o crime permanece o mesmo – o uso do direito de reportar o que está sendo dito a grupelhos de ensandecidos que amam odiar as instituições, alcançam orgasmos múltiplos espalhando o ódio e adoram amar os loucos, desvairados e insuportavelmente foras da lei -, os generais sabiam que bastava ordenar qualquer coisa aos empresários do setor. Nunca precisaram microfones de rádios públicas ou celulares de seguidores fundamentalistas para intimidações.
Talvez os generais de ontem tivessem consciência de que o país e o povo iriam mudar. E mudaram. Experimentamos e gostamos da democracia plena, Contra ou a favor, vermelha ou marrom, a imprensa, que já foi o quarto poder, deixou de ter a maior condição de sua existência: a liberdade. Vale repetir à exaustão que, nem mesmo nos dias de chumbo da ditadura – período em que me descobri jornalista – e da mais negra fase de censura, quando jornais, revistas, rádios e TVs eram invadidos, profissionais presos, torturados e mortos, nenhum repórter, editor ou fotógrafo foi execrado publicamente e ameaçado de porrada pelo presidente da República, ministros, assessores ou puxa-sacos de plantão.
Tínhamos coragem de “fazer” informação. O extinto Jornal do Brasil – escola de todos – era mestre nisso. Os editores se viravam e conseguiam informar seus milhões de leitores na previsão do tempo: “Nuvens negras em Brasília”, “Tempo fechado no Rio”, “Temporal em São Paulo”. Nos dias atuais, além da coragem e apoio dos chefes, falta capacidade de ação no comando das empresas de comunicação. Por exemplo, já que Bolsonaro tem ojeriza pela imprensa, por que não o tratam da mesma maneira e passam a acompanhá-lo à distância, exatamente como Roberto Marinho fazia contra Leonel Brizola e com o sapo barbudo Luiz Inácio?
Mesmo agoniados e em desvantagem física, nossos valorosos jornais e jornalistas da época – a maioria de insubstituível saudade – insistiam em burlar o ordenamento vigente. Corajosos na função de bem informar e obrigados a acompanhar a movimentação da concorrência, o risco sempre era o melhor caminho. Como conviver com quem não admite o contraditório? Como aceitar quem ama ser odiado? Como ser comandado por alguém que faz da mentira sua única verdade? São indagações que o próprio mentiroso não consegue responder.
Apesar de o povo estar escaldado pela falta de postura do tenente e de todos os senões apresentados, as chances de o atual chefe supremo das Forças Armadas se eleger não são remotas. Ainda não surgiram adversários com discursos fora do extremismo e capazes de absorver os que estão cansados de roubalheiras e de rompantes mentirosos. Então, resta esperar por dias melhores. Felizmente, atualmente poucos dos membros do generalato são destemidos defensores da subserviência e de um segundo polpudo contracheque. Como nos anos de dureza, a maioria dos estrelados de hoje opta pela sensatez, tem noção das mazelas do país e, a exemplo do grosso da população, sabe que o trem está a ponto de descarrilar.
Problemas pela frente – Janeiro e fevereiro serão determinantes para o futuro da política nacional. No dia 20 deste mês, Joe Biden assume como 46º. presidente dos Estados Unidos. Kamala Harris será vice-presidente. Como Biden não coabita o espaço de loucuras de Donald Trump, os EUA retomam o estágio de seriedade e de alguma letargia e, provavelmente, as festividades serão limitadas devido à pandemia de Covid-19. É o que se espera de todo dirigente que raciocina. Políticos, investidores, técnicos e o povo brasileiro não alimentam qualquer expectativa de sintonia com o habitante do Palácio do Planalto, hábil na vassalagem a Trump e boquirroto nos acenos a Biden.
O mundo assistiu inquieto às ações de hostilidade e, pasmem, de soberba de Bolsonaro e ministros a Biden. Tudo para agradar o “chefe” yankee. Esqueceram que a terra é redonda e que quatros anos não são eternos. Chegou a hora da prestação de contas. Não sabemos o que virá, mas certamente o Brasil terá de sentar no banquinho do castigo e se preparar para as palmatórias, principalmente as econômicas e ambientais. Na melhor das hipóteses, nosso fictício Super-Homem dos trópicos capricornianos terá de afrouxar o cinto e mostrar que estamos longe, muito longe, de nos imaginarmos coração ou cérebro do Mapa Mundi. Com a mentalidade tacanha do poderoso-mor e de seus ministros subservientes, ainda somos – e seremos por longo tempo – a circunferência nojenta do mundo. Graças a abundância de água e de florestas.
Além de Biden, também terá peso em nosso futuro as eleições, em fevereiro, para as mesas da Câmara e o Senado, notadamente da primeira. Não temos os melhor dos quadros no lado contrário ao do apoiado pelo presidente da República. Entretanto, foi o que sobrou dos cacos e dos remendos da ruptura patrocinada por Bolsonaro logo após a posse. Quem não é a seu favor está na lista de empurrões ao abismo. Simples assim. Imagino que, para evitar o fim da pluralidade social – e só desse modo explica-se a movimentação de centro-esquerda -, Rodrigo Maia, Baleia Rossi e suas rapaziadas do MDB, PT, PDT, Psol, PCdoB, PSDB e afins medirão forças com a turma do quanto pior melhor, liderada pelo íntegro e probo alagoano Arthur Lira. Estamos bem próximos de 2022. Vamos esperar e torcer para que tenhamos um país melhor, com vacinas, seringas, presidente, ministros, magistrados, parlamentares e eleitores mais confiáveis.
*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978