Fitei-a por todo o fim da tarde até o início da noite. Já havia separado o necessário para o seu funcionamento. O óleo e os fósforos. Num dado momento, cumpri o ritual. No primeiro compartimento da lâmpada, que se assemelhava a uma bacia de metal virada para baixo, a pequena tampa de encaixe de um biquinho foi removida e, dali de dentro, puxei um pouco o pavio feito de linha de algodão. No extremo oposto, um reservatório de tampa rosqueada foi aberto para colocar o óleo. Acima daquela parte, um outro compartimento, pontiagudo, tinha em seu corpo cilíndrico uma esfera de vidro acoplada a uma plataforma metálica. Do centro da esfera, que possuía pequena abertura lateral, saía também um pavio para a chama que a iluminava por dentro, o que certamente projetaria no ambiente uma linda luz azul.
O óleo, ao ser queimado, aquecia uma serpentina que, por um mecanismo interno, fazia a plataforma sobre a qual se prendia a esfera de vidro girar. Assim, além da luz azul, os desenhos abstratos no próprio vidro também se amplificavam, traçando marcas mágicas em volta. Demorava alguns minutos para que o efeito acontecesse.
Fiquei esperando. Lentamente o sistema aqueceu depois de acesas as duas chamas e, de repente, o cômodo, já iluminado pela luz tênue e noturna, começou a girar, girar, girar, trôpego daquela claridade azul confusa. Era, ao mesmo tempo, um efeito mágico e incômodo, como a evocar a magia do distante oriente, da Pérsia ou do Azerbaijão – era incerta a origem do insólito aparelho.
E eu me detive ali, agora em presença apenas da luz azul e dura, hipnotizado, sonolento, tonto, vendo como as coisas a minha volta mudavam de cor, para mudarem de forma e até de natureza. Era como se tudo houvesse ganhado vida e movimento, por efeito da esfera acesa e girante. Comecei a passar mal, a sentir os sentidos me faltarem, deixei-me cair numa poltrona e, posso jurar, conservando os olhos semiabertos, vi sair da chama de dentro da esfera algo como uma forma humana, pequena, que se pôs de pé ao lado do móvel em que se apoiava a lâmpada e, aos poucos, foi crescendo e se adensando, até poder ser distinguida perfeitamente como um homem. Um homem alto, de vestes exóticas, com uma barba e bigode finos, um nariz aquilino com uma joia na columela. A pele dele era estranha e me provocava arrepios, porque era decididamente azul. Um azul do mesmo tom que a luz da lâmpada que continuava a girar.
Ele chegou perto de mim e eu, que pensava haver dormido e sonhado por um instante, procurei me conservar em vigília para melhor apreciar e procurar entender aquele fenômeno. Não sei se me deu medo ou mera curiosidade. O ser azul se aproximava ainda mais e, quando procurei acordar da madorna, percebi estar bem lúcido. E ele falou para mim:
“Sou Ahriman, o espírito que ficou séculos preso nesta lâmpada. Vim porque me chamastes. Vou te conceder reviver tua vida inteira, sabendo, no entanto, o que sabes hoje. Este é o único presente que posso dar-te, antes que me afaste da lâmpada e vá correr novamente o mundo. A condição é que a deixes acesa até eu estar longe.”
Eu só podia estar louco. Uma tontura e um abatimento, mais fortes que minha razão, me mantiveram preso à poltrona, cujas fibras agora como que feriam meu corpo. Senti-me nu, apesar de estar vestido, e o ar ao meu redor era gelado e denso. Perguntei ao estranho que se apresentara:
“Como assim? O que você me oferece pode ser sublime e horrível. Qual será a consequência da minha aceitação ou recusa?”
Respondeu-me:
“És absolutamente livre para escolher. Se não o quiseres, viverás até a morte inevitável e marcada. Se quiseres, no entanto, será tudo igual. Tua vida está escrita. Não podes mudar tua condição de hoje, mas nada será surpresa. Dou-te a oportunidade para reviver tudo. Tuas dores e teus amores. A vida é um mistério e uma aventura enquanto se desenrola, mas se é repetida, torna-se previsível e tediosa. Tens de responder rápido, enquanto a esfera gira.”
Com o resto de razão que me assistia, comecei a pensar na oferta do espírito mágico. Reviver a minha vida toda com a consciência que eu tenho hoje, sabedor de todos os fatos que me aconteceriam. Que tentadora proposta! Repetir todas as emoções e amores da minha vida. Rever meus avós na infância vivida na grande casa suburbana onde passava os dias antes de começar a escola. A atenção dos meus pais, as primeiras lições, os amigos da adolescência, os amores, a emoção que senti quando conheci aquela que viria a ser minha esposa. O nascimento de minha filha, cada realização profissional, as conquistas materiais e os sucessos no tribunal. Tudo aquilo me empolgou e me deu como uma injeção de vida e de perspectiva.
Minha história não se resumia a ocorrências esparsas, mas era composta de longos dias que estavam ali prontos a serem revividos, sabendo como se sucederiam, qual seria o resultado das minhas diversas ações. Eu, quis saber do gênio, seria obrigado a repeti-las?
“Sentirás como um ímpeto a te guiar. Não te afastarás do que fizestes. Era tudo para ser como foi. Eu disse: estava escrito” – respondeu-me o estranho visitante.
Se era assim, se era apenas isso, eu fiquei receoso de aceitar a oferta da entidade azul. Afinal, com a convivência com meus avós viriam também as broncas que recebi deles quando subia em árvores ou me demorava a vir jantar. Depois eles morreriam, um seguido do outro, na penúria em que viveram nos seus últimos anos, e viria a casa suburbana a se deteriorar até ser vendida e demolida de forma inclemente para a construção de um edifício sem-graça. As vezes em que as lições escolares me intimidaram e a dificuldade sempre presente na matemática, a angústia que sentia durante as provas. As brigas com amigos da adolescência, antes tão queridos, e os rumos diversos que cada um tomou na vida a ponto de nos distanciarmos e não guardarmos mais qualquer relação. Os amores que me fizeram sofrer, até o que trouxe o sofrimento final da solidão que já dura tantos anos. Rever a esposa traria também de volta a sua doença, vê-la definhando na cama, os médicos desesperançosos quando os tratamentos já não traziam qualquer resultado prático – apenas repetidos padecimentos. O nascimento de minha filha, seguido de seu crescimento, faria com que eu revivesse cada preocupação, cada dúvida frente ao seu desenvolvimento, entendendo que não há fórmula pronta para a criação de filhos. O quadro seria pior após a morte da esposa, quando me senti sozinho, desnorteado e, por alguns momentos, pensei em desistir das tarefas, acometê-las a outros que fossem mais capazes que eu. Até alcançar a solidez de meu escritório, sentiria novamente muitas decepções com os clientes que reclamavam de coisas que estavam totalmente fora de meu alcance, das rescisões contratuais inesperadas, daqueles a quem me dedicava no trabalho e não me davam, no tempo certo, o devido reconhecimento ou retribuição. Todas as realizações profissionais viriam acompanhadas também das vezes em que fracassei, no direito ou nas relações humanas, por conta das imprevisibilidades da vida. As conquistas materiais implicariam em realizar, de novo, todos os trabalhos extenuantes, repetir as horas em que não podia me dedicar a mais nada, a não ser ganhar a vida enquanto, no fundo, tinha um sentimento incômodo de que a perdia, afastando-me da minha verdadeira essência. Os sucessos no tribunal me fariam reviver também os fracassos, quando a lei ou os juízes foram injustos para compreender a situação das pessoas que a mim confiavam sua vida, sua liberdade ou seu patrimônio. Cada antiguidade comprada seria previamente sabida, esvaziando o ato da expectativa e da procura de qualquer emoção. Até mesmo saberia, desde a tenra idade, do momento em que iria encontrar a lâmpada cuja luz azul se projetava agora em minha sala.
Decididamente recusei a oferta do espírito misterioso. Suas feições se conservaram impávidas, não demonstrando qualquer reação à minha recusa. Aos poucos ele se afastou sem dizer nada. Foi se integrando à luz azul da lâmpada, se desfazendo, se tornando cada vez mais unido a ela até que, num dos giros da esfera de vidro, tornou-se indistinto das formas insólitas que ela projetava. Sumiu. Eu ainda fiquei largado naquela poltrona por muitas horas, esquecido de mim mesmo, apenas pensando na experiência noturna até acordar de manhã, dolorido da posição em que me mantive, sem saber ao certo se tudo aquilo fora um delírio, um sonho, ou se realmente me passou.
Levantei-me pronto para encarar mais um dia que seria diferente de todos os dias passados, uma surpresa completa, planejando começar a escrever um tratado definitivo e revolucionário sobre as consequências jurídicas da ressurreição dos mortos.