Apaixonado por matemática, Genival acabou se formando em direito, já que o pai, advogado de renome, o instigou a seguir o mesmo caminho. Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, andava pelas ruas com a cabeça voltada para o chão. Alguns diziam que isso era por causa do enorme topete, meio fora de moda. Outros, todavia, afirmavam que era por conta da timidez.
De tão topetudo, o rapaz parecia ter saído do túnel do tempo direto dos áureos anos da ultrapassada brilhantina. As costeletas, tão negras quanto seus cabelos, tentavam, sem sucesso, emoldurar aquele rosto pouco chamativo, caso não fossem as crateras na pele, lembranças das espinhas que outrora tanto o incomodaram. Sem tempo para pensar em bobagens, o rapaz, então recém saído da faculdade, se metia no meio dos códigos legais para tentar livrar algum de seus parcos clientes de uma pena mais dura.
Apesar da pouca experiência, não demorou para entender todo aquele emaranhado jogo de palavras e ideias que cercam a advocacia. Percebeu que, no caso de júri, precisava entrar na cabeça daqueles sete indivíduos alheios aos trâmites da lei. Era mais um exercício da ética e, especialmente, da moral. E Genival sabia como ninguém instigar os profundos sentimentos de costumes, por mais tolos que fossem, naqueles seres que ignoram a legislação, mas são bombardeados, desde a mais tenra idade, por frases de conduta, a maioria religiosa.
Quando precisava convencer o juiz, fazia uma aprofundada pesquisa sobre a vida do magistrado. Obviamente que estudava com afinco o caso do seu cliente, mas não se furtava em buscar informações acerca de quem iria dar a sentença. Aliás, vale até uma nota especial sobre o caso do furto de uma vaca premiada, que tinha até nome. Pois bem, a dita cuja se chamava Clarineta, uma bela duma holandesa quase toda branca, se não fossem por umas manchas pretas aqui e ali.
O cliente do Genival, João Maria, havia confessado que tinha sido ele que afanara a tal vaca, pois precisava fazer um churrasco para o casório da única filha. Réu confesso apenas ao pé do ouvido do advogado, pois, de resto, foi muito bem orientado a dizer que era inocente, mesmo que debaixo de saraivadas. E, de tanto ouvir que era inocente, até começou a acreditar naquela ladainha sem tamanho.
Jurava de pés juntos que a carne servida aos convidados era de uma outra vaca, que, por conta dessas coincidências inimagináveis da vida, nascera com as mesmas cores e marcações da finada Clarineta. Finada ou desaparecida? Sim, isso mesmo! Essa foi a estratégia que o Genival tramou e, com sucesso, conseguiu colocar não apenas uma pulga, mas um monte desses insetos, tão bem treinados desde tenra idade para sugar o sangue alheio, atrás das orelhas dos sete jurados.
Para completar todo aquele teatro, eis que o Genival, com a cara mais lavada do mundo, ainda propôs um mutirão para encontrar a Clarineta. É óbvio que a vaca nunca foi encontrada. Nem mesmo os ossos, que foram muito bem enterrados em local incerto. É verdade que um foi parar na vasilha do velho Lobo, o enorme vira-lata do João Maria. Mas ninguém se deu ao trabalho de procurar pela finada justamente ali.
Genival ganhou fama na região. Seu nome chegou à capital como o mais notório conhecedor do direito. Até ilustres magistrados iam ter com ele. Reverências das mais elevadas, sempre carregadas de mimos, seja uma bela garrafa de vinho dos mais caros, seja um lote de frangas poedeiras. Ficou rico graças aos inúmeros casos vitoriosos.
Aos 36, decidiu que já era hora de se casar. Sem pretendentes à vista, resolveu começar a investir na vida social. Algumas festas e confraternizações depois, conheceu Joana e desejou namorá-la. Ciente de que quem escolhe é a mulher, usou toda sua habilidade matemática e, então, pôs o plano em prática. O cálculo pareceu dar resultado, já que a moça logo começou a notá-lo.
O namoro durou pouco mais de um ano e, de repente, se casaram. Foi uma festança que atraiu toda aquela gente da região, além de outros tantos convidados vindos de lugares diversos. Até o João Maria tentou se comprometer com a carne para o churrasco, mas foi desencorajado pelo advogado, que não pretendia defender novamente seu cliente usando a mesma artimanha.
Os filhos chegaram em dupla nove meses após. Cresceram enquanto o pai prosseguia sua saga de ferrenho defensor dos interesses da sua cada vez maior clientela. Já sem tempo para contar tanto dinheiro, Genival sentiu que era hora de se aposentar. E foi o que fez antes de completar 60 anos. É verdade que, de vez em quando, ainda prestava consultoria a alguém mais importante, que o compensava de maneira generosa.
Era um domingo sossegado, desses que dá para passar o dia inteiro deitado numa rede na varanda, sem se preocupar com o tempo, mas apenas manter os ouvidos abertos para deixar o som dos cantos dos passarinhos entrar. Lá estava o Genival, quando, de repente, ele toma uma decisão radical. Olha para os lindos olhos da esposa e diz que vai voltar a estudar. Joana apenas sorriu, pois achava que era mais uma brincadeira do marido. Que nada!
Um mês após, Genival estava sentado numa dura cadeira de madeira, da mesma forma que seus colegas de turma, todos na flor da idade. Com o pai falecido há alguns anos e sem muito tempo para vacilar, o advogado finalmente realizava seu antigo sonho, a matemática.