O livro Nous l’avons tant aimée, la révolution escrito pelo líder de Maio de 68 na França, Daniel Cohn-Bendit, usa o verbo no pretérito composto (o “passé composé” francês). Na tradução, a Editora Brasiliense optou pelo pretérito imperfeito: “Nós que amávamos tanto a revolução”. Se fosse o perfeito seria amamos, que em português, unicamente no caso de nós, guarda a mesma forma tanto no presente como no pretérito, o que cria a desejada ambiguidade na evocação de um passado que não se contrapõe ao presente.
Cohn-Bendit reúne entrevistas feitas por ele em diferentes países, cujas manifestações de rua fizeram tremer o planeta em 1968. Quase vinte anos depois, ele ouviu, entre outros, líderes dos Panteras Negras, Yuppies, Women´s Lib, Brigadas Vermelhas, Solidarność, guerrilheiros da América Latina e, no Brasil, Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis. Alguns dos entrevistados, desiludidos, desistiram da luta, mas muitos continuam na militância no campo democrático.
É o caso do grupo “Geração 68 Sempre na Luta” que convocou um ato público para comemorar os 53 anos da “passeata dos cem mil” neste 26 de junho, na Cinelândia, no Rio. Fui. Se fosse eu o único a comparecer, diria eu amava ou amei. Mas na companhia, ainda que discreta de outros companheiros, o passado é perfeito: nós amamos a revolução. Atravessa assim os tempos verbais e destaca o caráter coletivo e a relativa perenidade desse engajamento.
O que ficou da passeata dos cem mil? Milhares já morreram “de susto, de bala ou vício”, não poucos de corona, os sobreviventes com dificuldades de locomoção ou temerosos de aglomeração. Diante disso, o cineasta Silvio Tendler, que apoiou o ato simbólico, brincou me dizendo que agora seria a “passeata dos sem mil”. Fui lá conferir. Vesti minha camisa amarela da Escola Tuyuka Utapinopona, preparei um cartaz e marchei para a Cinelândia na companhia dos irmãos Pucu – o poeta Luiz e o advogado Márcio com sua esposa Elizabeth. Essa comitiva amazonense, que viveu 68 no Rio, levava no coração Thomazinho Meirelles, assassinado pela ditadura.
Quantos “gatosos” pingados havia na Cinelândia? Quatrocentos, talvez quinhentos? Mas se somássemos todas as histórias ali contadas, os cem mil estavam lá rezando em nossos ouvidos: “Fazei isso em memória de mim”. Situação similar deve ter sido vivida pelas demais cidades que convocaram para o ato – Fortaleza, Goiânia, Brasília, Recife e Belo Horizonte. Em razão da chuva, Porto Alegre transferiu para o próximo sábado (3).
Agora, no Rio, ali estávamos, meio século depois, trocando olhares que se encontravam, tentando adivinhar o que havia por trás das máscaras e dos cabelos brancos. Montados no Rocinante do Quixote, nós, que tanto amamos a revolução, rememoramos dezenas de manifestações ocorridas naqueles tempos no combate contra a ditadura, a censura, a violência policial.
Nas escadarias da Câmara Municipal se fez presente João Batista Andrade, já falecido, representado por seu filho batizado como Davi Yanomami. Fizemos uma rodinha para ressuscitar o querido JB, meu colega de sala na Faculdade Nacional de Direito. Ambos fomos presos na passeata do dia 15 de setembro de 1966. Guardo a data porque obtive os dados da ABIN – Agência Brasileira de Inteligência. O comandante do Regimento Marechal Caetano de Farias, na Frei Caneca, exigiu para nos soltar a presença de algum familiar que, no meu caso, residiam em Manaus. O pai do JB, doutor Andrade, advogado, veio tirar o filho:
– Só saio daqui se o amazonense também sair.
O velho, puto da vida, resistiu, mas acabou assinando um termo de responsabilidade por alguém que ele não conhecia.
Cego em tiroteio
– Se eu ficar o tempo todo contando histórias, não vou desaparecer – escreveu Patrícia Portela. Histórias abundam.
Numa passeata contra os acordos MEC-USAID que pretendiam privatizar a escola pública e instituir o ensino pago, os policiais nos perseguiam e, no meio de uma desabalada carreira, meus óculos caíram na rua Santa Luzia. Continuei a fuga assim mesmo como cego em tiroteio. Foi aí que o líder do Grêmio do Colégio de Aplicação da UFRJ, Emilio Mira y Lopez, retornou para recuperá-los, enfrentando a repressão policial. Esse gesto corajoso e solidário, que me fez ver o mundo outra vez, ligou para sempre as nossas lembranças e selou uma amizade. Décadas depois encontrei Emilio, que hoje é médico, trata dos meus achaques e fez contato com o grupo Geração 68.
Naquele 1968, a TV Continental com Fernando Barbosa Lima convidou Ana Arruda Callado e Reynaldo Jardim para o Jornal de Vanguarda. Os dois levaram para lá a juventude e a inexperiência desse amazonense aqui contratado como repórter. Fui escalado para cobrir uma passeata estudantil no centro do Rio, transformado em praça de guerra. Offices boys se juntaram aos estudantes para jogar pedras na polícia. Do alto de um edifício na rua México, alguém atirou uma máquina de escrever que caiu sobre o ombro de um meganha, no momento em que levava preso um manifestante. Podia ter acertado o jovem, que teve sorte e se escafedeu.
– Deus é estudante – eu disse ao relatar o fato ao Reynaldo, que diariamente, no Jornal de Vanguarda comentava em versos alguma notícia. Nessa noite, cada estrofe do poema terminava com o estribilho: “Como disse Riba, Deus é estudante”.
Cinderela da Revolução
No exílio no Chile, muitas dessas histórias eram lembradas e relembradas como aquela da passeata na qual manifestantes perseguidos pela polícia invadiram uma loja na rua Uruguaiana e se misturaram aos clientes. O gerente, solidário, fechou a porta e pediu silêncio aos estudantes. Mas um sargento, que viu tudo, aos gritos, mandou abrir. O camburão já estava na porta para levar os presos. Como distinguir, porém, o manifestante do freguês? O sargento, tendo na mão um mocassim perdido na fuga, perguntou: De quem é esse sapato? Descalço de um pé, Teodoro Buarque de Hollanda, primo do Chico, foi o primeiro a ser preso.
– Eis a Cinderela da Revolução – brincou o titiriteiro Euclides Coelho de Souza ao ouvir Teodoro contar o episódio na Pensão da Calle Grajales, onde viviam muitos brasileiros exilados. Euclides, com seu espanhol impecável ainda traduziu: Tu eres la Cenicienta de la Revolución.
Algumas histórias são engraçadas, outras ingênuas, muitas tristes com prisões, torturas e mortes. Na “passeata dos sem mil”, todos traziam na memória os cem mil, aquelas e aqueles que participaram das lutas contra a ditadura militar de 1964 a 1985 e que ajudaram a conquistar a democracia, as liberdades, a anistia, a Constituinte, as eleições diretas – como diz o manifesto da “Geração 68 sempre na luta”.
Embora não seja um bloco homogêneo e abrigue gente de diversos horizontes políticos, o que une a todos que amamos a revolução são os valores de humanidade e solidariedade negados hoje por um governo fascista e corrupto, que refuta a ciência, destrói o meio ambiente e tripudia sobre os direitos indígenas garantidos na Constituição. Daí o grito: Fora Bolsonaro, cujo crime maior não foi o de prevaricação, nem a assinatura mutretada do contrato de R$1,61 bilhão para a compra da Covaxin, nem muito menos as “rachadinhas” ou o gasto de dinheiro público para a propaganda política com as motociatas, enquanto o Brasil conta mais de meio milhão de mortos.
O crime maior de Bolsonaro, que devia ser impichado e preso por isso, foi retirar a máscara de proteção contra a Covid-19 de uma criança de colo no Rio Grande do Norte e de mandar uma menina de 10 anos, que recitava uma poesia, retirar sua máscara. Quanta estupidez neste ato criminoso, burro e cruel, que ao atropelar a proteção materna, coloca em risco a saúde das crianças.
O Brasil vive um momento tenebroso de sua história. Contra o desânimo e o medo, a Geração 68 se identificou com faixas e cartazes nas manifestações do dia 19 e agora do dia 26. É como se estivesse entoando com Mercedes Sosa a canção de seu compatriota Eduardo Falú: “No tengo miedo al inverno, con tu recuerdo lleno de sol”. Que esse passeio pela lembrança sirva para manter viva a memória solar da luta, que nos enche de coragem.