Rodada de buraco
Geraldo, Maurício, Cri, Jajau e os pitacos de Lenice, hoje junto com o quarteto

O tempo, as décadas de 80 e 90 do século passado. A localização, a casa de esquina do Bloco D, da 709 Norte. A cidade, Brasília. A rotina era semanal. Quando não dava na sexta, com certeza no sábado. Vivia-se, assim, uma daquelas noites que começavam com um inocente “só uma partidinha” e terminavam com olheiras profundas e desavenças familiares temporárias, como se alguém tivesse escondido um Ás na manga ou deixado escapar uma carta no chão, para ser sorrateiramente recolhida no auge da partida.
Sobre a mesa da sala, as cartas estavam embaralhadas junto com as esperanças de vitória de cada um. Rodeando os quatro jogadores, sempre com pitacos aqui e ali, Lenice, nora de Geraldo, que costumava ir à velha casa na companhia do marido Géo, sorria. Ela sabia que o sogro, um veterano do buraco, reinava soberano com sua expressão serena, enquanto os genros Cri e Djalma tentavam, entre um gole e outro de café, descobrir os segredos do jogo. O irmão Maurício, por sua vez, era o estrategista de plantão, sempre suspeito de contar as cartas mentalmente. E fazia, com Geraldo, uma dupla de sucesso tipo feijão com arroz.
A primeira rodada foi de reconhecimento. O sogro Geraldo jogava com a calma de quem já viu muitas madrugadas sendo consumidas por partidas intermináveis. Cri, o mais ansioso, se contorcia na cadeira a cada descarte errado, enquanto Djalma tentava manter a compostura, mas soltava pequenos gemidos de frustração quando a mão não colaborava. Maurício, com um leve sorriso de canto de boca, apenas observava, tramando seu golpe de mestre.
À medida que a noite avançava e o café esfriava, o jogo ganhava contornos de batalha épica. Uma canastra real estava prestes a ser formada. Geraldo, implacável, desferia jogadas como um velho samurai manejando a espada. Cri e Djalma se uniram em uma aliança temporária contra o monstro do baralho, mas nada parecia abalar o veterano. Já Maurício, misterioso como sempre, fazia cálculos invisíveis, prestes a revelar seu movimento decisivo.
Então veio o momento crucial. Uma carta salvadora, uma jogada perfeita… ou um desastre total. A tensão era palpável. Cri segurava a respiração. Djalma apertava o baralho com força. Maurício ajeitou os óculos com um ar professoral. E Geraldo, com um sorriso discreto, soltou a carta final: uma canastra real reluzente como um troféu olímpico. O silêncio foi seguido por um suspiro coletivo. E, então, o riso explodiu na sala.
Mais um jogo tinha acabado. Porém as histórias daquela noite continuam sendo contadas por gerações. Com o passar dos anos, o quarteto foi embora, reunido, hoje, em uma mesa lá na Constelação de Gêmeos, onde costumam se encontrar os intelectuais que deixam a Terra. Até a próxima partida, Cri e Djalma tentarão novamente destronar o invencível sogro Geraldo e o irmão Maurício… ou pelo menos não terminarem em último lugar.
Lenice, então morando em Boa Viagem, no Recife, acaba de embarcar ao encontro deles. Não necessariamente por saudades do sogro, do tio, dos concunhados. Talvez para dar mais um daqueles velhos pitacos. Ou mesmo sugerir que um dos jogadores deixou cair sutilmente uma carta no chão.
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José Seabra é Diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras
