Gervásia, Almeida por parte do pai, famoso industrial dos anos 1970, falido 20 anos após pelos desastrosos planos do governo, nasceu e se criou na vastidão da cidade de São Paulo. E, se a mulher não herdou a fortuna que um dia esperou receber, vivia confortavelmente em um dos sete apartamentos após o inventário. Quanto aos outros, alugava-os a peso de ouro em bairros nobres da capital paulista.
Aos 73, acabou se mudando para Brasília. Tudo por causa do filho caçula, que virou sócio de um importante escritório de advocacia. Um amor de rapaz, mas que nem por isso justificava aquela preferência por parte de Gervásia. Coisas de mãe, alguém poderia dizer, provocava rancor no resto da prole.
Devidamente instalada em um amplo apartamento na Asa Sul, Gervásia sentia falta das amigas de carteado. Um bando de velhos, por assim dizer, que passava tardes acaloradas à custa de chá servido com torradas. Geleia ou manteiga, de acordo com o gosto de cada um.
Gervásia se sentia tão isolada em Brasília, que estava disposta a aceitar qualquer convite para eventos. E, na primeira oportunidade que surgiu, lá foi a velha cumprir o papel de moradora na reunião de condomínio. Entre tantos assuntos desinteressantes, acabou se aproximando da Eulália, idosa quase tão anosa como ela.
Surgiu uma conexão tão forte entre as duas, que resolveram prolongar o papo após a reunião acabar. Prometeram um chá para o dia seguinte, e foi o que aconteceu, justamente no apartamento da Gervásia. Conversa vai, conversa vem, descobriram tantos gostos em comum. Amavam o Cauby Peixoto, eram apaixonadas pelo Marcello Mastroianni e adoravam jogar buraco.
Eulália, que possuía uma patota que já havia dobrado o cabo da boa esperança há tempos, propôs outro chá para a quinta-feira. Quis porque quis que o evento fosse no seu apartamento, mas foi convencida por Gervásia que fosse no dela. Dito e feito, lá estava aquela gente bebericando chazinho e degustando torradinhas no lar, doce lar da Gervásia.
Mesa armada, as duplas foram formadas e o jogo de cartas virou tradição naquele prédio. Ninguém queria perder aqueles eventos tão disputados. De vez em quando, apareciam dois ou três outros velhos. Para falar a verdade, eram mais velhas do que velhos, principalmente as quase inseparáveis Vânia e Deise Mentirinha. Esta era conhecida por tal alcunha não porque tivesse o hábito da inverdade, mas pelo simples fato de ser uma mulher bem baixinha, quase anã. E, como mentira tem perna curta, o apelido pegou logo na infância e, mesmo após tantos anos, a perseguia. No início a irritava, chegou até quase virar caso de polícia. E virou!
E foi assim que ela conheceu seu falecido marido, Paulão Suspiro, o então delegado linha dura da 1ª Delegacia de Polícia de Salvador. Aliás, o policial não era afeito à guloseima que lhe serviu de alcunha. Isso era devido aos suspiros que as mocinhas da época davam quando se defrontavam com aquele homem charmoso, ainda mais quando afiava as pontas do bigode bem cuidado. Seja como for, Paulão, que media para lá de um metro e noventa, logo de cara se viu apaixonado pela Deise. E tudo porque ela, então com menos de 20 anos, havia ido à delegacia depor contra um grupo de arruaceiros que vivia zombando de suas perninhas tão curtas: “Olha, menina, mentira tem perna curta!”, provocavam.
O depoimento caiu no esquecimento. A moça chegou até mesmo a agradecer a Deus pelo apelido, já que foi graças a ele que conheceu o homem da sua vida. E, dessa forma, passou a não ligar. Ou melhor, até ligava, mas quando as pessoas passavam muito tempo sem lembrá-la do apelido. Tanto é que vieram os filhos, os netos e, mesmo assim, ela sempre fez questão de falar para todos, sem exceção, como foi o dia do primeiro encontro com o seu Paulão Suspiro.
Os dois viveram 45 anos relativamente felizes, até que Paulão não suportou os efeitos de um enfisema pulmonar e, depois de agonizar por quase duas semanas, deu seu último suspiro. Mentirinha, meio a contragosto, atendendo aos apelos do filho que acabara de se separar, mudou-se para Brasília. Infeliz no começo, acabou se enturmando com a Eulália, com quem passou a dividir as agruras da viuvez. Mas deixemos de lado tais histórias, pois hoje o jogo de buraco está tão disputado, que periga sair faísca.