Democracia nos trilhos
Golpe e tortura nunca mais. E jamais a anistia, como golpistas querem

Como dizia Mathuzalém pai, os políticos antigos se esbofeteavam, se matavam, mas as rusgas partidárias e ideológicas poupavam o país e seu povo. De remota lembrança, dois casos balançaram as estruturas políticas de meados do século passado. Em 1954, o então deputado federal Carlos Lacerda, líder da extinta UDN e ex-governador do Estado da Guanabara, só se calou depois de, em agosto daquele ano, levar o presidente Getúlio Vargas ao suicídio. Por conta de uma rixa de poder, em dezembro de 1963, o senador Arnon de Mello (PDC), pai do ex-presidente Fernando Collor, atirou no que viu e acertou no que não viu.
Era dezembro de 1963. No plenário do Senado, Arnon tentou matar o desafeto Silvestre Péricles (PTB), ambos de Alagoas, mas acabou matando o senador acriano José Kairala (PSD), que estava só de passagem pelo Parlamento. No faroeste caboclo do Congresso Nacional, o povo foi mantido à distância, ou seja, se livrou até dos estilhaços. Veio a Redentora de 1964, cuja lembrança não vale sequer um parágrafo. Em nome do povo, fechou a Casa do Povo e o resultado foi aquilo que se viu: o Brasil se transformou no purgatório da beleza e do caos. Foi o tempo do triunfo da ignorância e da estupidez.
Hoje, 61 anos depois, os discípulos das mesmas estultices querem novamente golpear a nação. Na verdade, queriam. Perderam a batalha por conta da épica reação do povo ordeiro e dos líderes de mentes sãs dos Três Poderes. A ideia era transformar em espetáculo o que não passou de diversão para o mito de beira de cerca. Registrem que o preço a ser pago pela balbúrdia ideológica será alto. As razões para a vitória da democracia foram numerosas. No entanto, além das reações citadas, vale ressaltar o timing entre um e outro episódio.
Em 1964, o golpe militar foi assegurado graças ao apoio direto do então presidente dos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson, ávido para se apossar, com escritura definitiva, dos bens naturais e minerais do Brasil. Curiosamente, passadas seis décadas, o levante de 8 de janeiro de 2023 só não se consumou por falta do abraço de outro presidente norte-americano. Avesso à forma de governo do mandatário bravateiro, Joe Biden emitiu recados claros e quase diários para nossos militares adesistas. Ou seja, algo estava muito errado para que as mesmas pedras rolassem de forma diferente.
E realmente estavam. O que se iniciou de maneira bisonha não podia terminar certo. Na verdade, o Coisinha de Jesus pregou em vão o nome de Deus, prometeu aos seguidores uma pátria nova e cheia de benesses, mas acabou morrendo na praia munido de botas e jaquetão, exatamente como seu ídolo Donald Trump, o espigão que, a exemplo do inquilino remoto do Planalto, deixou a Casa Branca como entrou: com as calças na mão, muita bosta nos bolsos, um monte de processos para responder e numerosos fakes disparados com fins para tentar justificar os meios. Voltou ainda mais ácido, mas ainda não emplacou como estadista.
De acordo com as previsões do astrólogo Serapião Espinha, entre uma coisa e outra não fez nenhuma das duas. Ainda falta um mar e meio para nadar, mas, gostem ou não, o Brasil mudou. Com a autoestima e o respeito internacionais recuperados, o país pode não viver o melhor de seus dias. Contudo, com respeito às viúvas repetidoras da cantiga de grilo contra a democracia, resta um único conserto na nau perfurada pelo veneno do ódio destilado durante quatro anos: mostrar aos embarcados e desembarcados que preto é preto e o branco é branco. Jamais um será o outro. Em resumo, apesar da cara de bunda dos vizinhos, estão cuidando (e bem) do nosso quintal. Golpe e tortura nunca mais. E anistia, nunca.
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Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978
