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Literatura inútil

Golpe transforma Distópolis em país onde só distopia tem espaço

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Produção de Francisco Filipino

Da imensa janela de seu escritório no Ministério do Urânio e da Energia Limpa, onde trabalhava, ele conseguia ver a vastidão de terrenos que haviam sido preparados pelo governo para a construção de novas instalações industriais. A demolição dos imóveis particulares, antes existentes naqueles lotes, havia sido objeto de tímida resistência por parte dos antigos proprietários. A imprensa, é claro, não noticiara nada, porque era toda controlada por agentes do Ministério da Moral e do Controle Social, mas ele, com informações privilegiadas, sabia que, os que haviam concordado, foram razoavelmente indenizados, ganhando casas de 20 metros quadrados em um novo bairro que estava sendo construído perto dali. Os que não concordaram, menos de cem, foram presos e desterrados para o interior do país, e provavelmente ninguém mais se lembraria deles – era proibido lembrar de quem fora desterrado.

Tudo andava normal naquela época em Distópolis. O normal era seguir o lema do governo: “Trabalho e Obediência”. Desde que o trabalho fosse no interesse geral, porque a sociedade era toda orientada no sentido de produzir e desenvolver atividades que o governo determinava, e a estrita observância a leis e regulamentos era um componente essencial daquela sociedade fortemente controlada por agentes do poder, que a cada dia encontravam meios de estar mais próximos e exercer mais autoridade sobre os habitantes do país. A expressão “cidadão” fora banida, pois continha, segundo a nova legislação, resquícios de individualismo egoísta e desprezo pela organização do todo, atentando contra os princípios que haviam de garantir a riqueza e independência de uma grande nação.

É certo que, mesmo sob vigilância constante, os habitantes, uma vez ou outra, ainda presenciavam ou ficavam sabendo de atos extremos que ocorriam pelas ruas. Crimes eram cometidos, ou, na linguagem corrente, “desconformidades eram observadas”. Os criminosos eram chamados de “desconformes”. Quando não eram abatidos imediatamente pela Polícia Governamental, que tinha a autorização de “desabilitar qualquer habitante flagrantemente apanhado no exercício de desconformidades capituladas como graves”, eram presos e, após processo sumário, conduzidos para locais não muito bem conhecidos. Uns falavam de colônias de trabalho forçado, ou “reenquadramento”. Outros suspeitavam da submissão à pena capital, ou “desabilitação definitiva”. O certo era que poucos, pouquíssimos, eram vistos de novo e, quando acontecia de retornarem, não restava sequer a sombra do que a pessoa havia sido um dia.

Mas voltemos ao personagem inicial e à cena de sua contemplação. Atendia pelo nome de Salus. Não era, decerto, seu nome original. Mas assim fora catalogado quando da criação de Distópolis e de suas novas leis. Os nomes de família e os antigos prenomes haviam sido abolidos para sempre, e ostentar o novo cognome era obrigação. As pessoas saíam à rua com vestimentas mais ou menos padronizadas, nas quais cores e formas identificavam o trabalho exercido e a classe a que pertenciam, e, no lado esquerdo do peito, uma plaqueta dourada com o seu nome gravado era de uso obrigatório e, sob ele, o “Número Unificado de Identificação”, ou NUI, um código de 11 algarismos através do qual o habitante era controlado e acessava os diversos serviços que o governo fornecia, graças ao pagamento de impostos de 66% da produção econômica individual. Era certo que raramente esses serviços eram eficientes, mas ninguém podia falar nisso, sob pena de punição severa. Ao contrário, todos deviam avaliá-los após a utilização, em painéis eletrônicos disponíveis nas repartições públicas em geral, que contavam com dois botões: “satisfatório” e “excelente”.

Salus era engenheiro. Antes da revolução que criou Distópolis, trabalhava em uma indústria de petróleo. O petróleo havia sido banido, e o governo estava investindo na produção de urânio para fornecê-lo a nações amigas mais ricas, enquanto desenvolvia tecnologia interna para utilização em produção de armas nucleares, ou “equipamentos de proteção coletiva”. A matriz energética era, agora, a bioenergia. Segundo a nova “Lei de Planificação”, era obrigatório a todo habitante consumir e defender a utilização do combustível bioenergético em todas as aplicações, e qualquer crítica a isso seria vista como uma desconformidade. Por sorte, Salus adaptara-se bem às novas diretrizes de trabalho determinadas pelo governo, e não encontrara problemas na sua atual rotina. Comandava uma equipe que estava comprometida em desenvolver um novo sistema de transporte coletivo que atendesse a todo o país, cujo território era vasto, movido à nova fonte de energia, que se tratava de eletricidade gerada por usinas que consumiam álcool combustível, plantado em extensos campos no interior do país, onde se derrubava a vegetação nativa para cultivar cana-de-açúcar. As baterias alimentadas por tais usinas eram compradas de países estrangeiros e, quando esgotada sua vida útil, eram enterradas em grandes fossas abertas em certas regiões das cidades, próximas de bairros mais pobres. Pobres não, porque tal palavra havia sido extraída dos dicionários de Distópolis. Não havia pobres, mas “habitantes desconectados da economia geral por falta de disposição para o trabalho”.

Todos os antigos estados e municípios, que formavam a nação anteriormente existente, haviam sido extintos. Distópolis era formada por apenas um nível de governo, uma casa legislativa e um único tribunal, que se dividia, segundo as suas competências, em algumas seções. A organização política de Distópolis era muito simples. Complexo era o esforço para que aquilo funcionasse. E não funcionava…

Antes da revolução, Salus tinha dois grandes amigos. Um viera para a nova realidade sob o nome de Gamor. Havia sido professor universitário na área de tecnologia e, agora, trabalhava para o governo, no Ministério do Entretenimento e do Adestramento Coletivo no desenvolvimento de novas formas de entretenimento para os habitantes. O governo determinara que toda forma de diversão e entretenimento seria digital. Sempre, obrigatoriamente, haveria a necessidade das pessoas, quer fossem crianças, adultos ou velhos, estarem conectadas a aparelhos digitais para se entreterem. Livros foram abolidos. Para ler, computadores de mão, pequenos e práticos, com obras aprovadas pelo governo na memória interna. Não havia conexão à rede, para evitar a circulação de escritos clandestinos ou inimigos do governo. A rede podia, sim, ser acessada, por meio de telefones celulares, que os habitantes usavam para navegar na RDPU – Rede Distópica Pública Universal, criada pelo próprio governo. A posse dos aparelhos celulares, fornecidos gratuitamente pelo Ministério do Controle de Comunicações, era liberada para qualquer pessoa acima de 5 anos de idade, e era desbloqueado por leitura facial. Um telefone pessoal e intransferível.

Um dos aplicativos mais utilizados do país era o que, também valendo-se de leitura facial, mais a inteligência artificial, mudava o rosto das pessoas, ora transformando-as em velhos, ora em bebês, colocando-os no corpo de personagens históricos (os que eram aprovados ou criados no âmbito da própria Distópolis) ou de ficção. Enquanto os usuários assim se divertiam, forneciam espontaneamente detalhes de sua fisionomia e do uso que faziam dos telefones e da RDPU, garantindo o controle absoluto de todos por parte do governo. Antes dos 5 anos, as crianças utilizavam a boa e velha televisão, que transmitia os programas de notícia e educativos produzidos pela única estação de TV, a DisTV, que substituíra a escola e as universidades, pois todas as aulas eram transmitidas por ali. Esse modelo trazia a dupla vantagem de universalizar o acesso à informação que o governo provia e evitar ao máximo o contato entre as pessoas – assim combatendo possíveis movimentos contrários à estabilidade do Estado.

O outro grande amigo de Salus era, antes da criação de Distópolis, escritor e poeta. Desse ele não guardara o nome. Somente uma tênue lembrança de haver lido um livro que ele escrevera, que falava de sonhos, de paisagens amplas, do cheiro de livros e de como eram belas as casas antigas… Salus se esforçava, mas o nome daquele amigo não lhe vinha na memória. Poesia havia sido definitivamente proibida após a revolução. Fora classificada como literatura inútil. Mesmo assim, Salus ainda tinha no coração a sensação agradável que a leitura de certos escritos de seu amigo lhe proporcionava. Parecia que havia naqueles poemas algo de desafiador e de livre. Não daquela liberdade condicionada ao sistema vigente, mas uma liberdade autêntica, que faz os homens e mulheres melhores a cada dia. Pois não se pode verdadeiramente evoluir a não ser que haja liberdade e independência.

Foi quando, num sobressalto, lembrou-se Salus de que havia escondido um único exemplar restante do livro de seu velho amigo em algum lugar. Onde estaria? Claro! Estava cuidadosamente embalado, sob o banco traseiro de seu automóvel. Ele planejara guardá-lo em seu gabinete, no ministério. Ali ninguém desconfiaria de que um produto clandestino e proibido pudesse estar acondicionado. O automóvel se encontrava no estacionamento, era o caso de, discretamente, ir pegar o exemplar e voltar ao gabinete, certamente nenhum agente do governo iria importuná-lo, pois era um funcionário graduado e muito respeitado. Acharia algum lugar para esconder novamente o livro, mas, antes, iria folheá-lo uma vez mais e procurar sentir no seu rosto como que uma lufada de vento da liberdade e da beleza inspirada por aquelas linhas.

Num espaço de poucos minutos ele desceu ao estacionamento, pegou o livro embalado em papel grosso e, quando vinha voltando, foi abordado por membros da escolta ministerial que ali se encontravam. O chefe da escolta, Capitão Milo, curioso com o formato e tamanho do volume que Salus trazia, exigiu ver do que se tratava. Salus apavorou-se. O sádico funcionário, tomando-lhe das mãos o pacote e rasgando a embalagem, leu o nome do autor com um sinistro sorriso:

– Ah, então trata-se de um autor banido. Em livro de papel. Esperava mais do senhor, Engenheiro Salus. Guardas, trata-se de um caso de desabilitação definitiva. Imediata! Levem-no para a área de descarte e procedam.

Arrancaram de Salus a plaqueta identificadora, sendo, em seguida, dominado e algemado. Ele foi levado para o subsolo do grande edifício do ministério onde, friamente, os agentes cumpriram a ordem do superior. Seu NUI foi apagado dos registros sociais e, em alguns dias, sequer os colegas de trabalho lembravam mais de seu nome. O livro, o último testemunho da passagem daquele pobre poeta sobre a Terra, foi devidamente incinerado. A literatura inútil, finalmente, estava extinta.

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