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Golpes indicam que cultura política autoritária contesta a hegemonia da democracia

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Gilbergues Santos

Em 2009, as Forças Armadas de Honduras efetivaram um clássico golpe de Estado sacando do poder o presidente democraticamente eleito Manuel Zelaya sob acusação de que ele poria, nas eleições daquele ano, um item plebiscitário para que os hondurenhos opinassem sobre a inclusão da reeleição na Constituição Federal. O golpe foi ilegítimo e legal. É que a Constituição de Honduras, tal qual a brasileira, possui dispositivo que dá as Forças Armadas prerrogativas para garantir a lei e a ordem. O que não se questionou é se a ordem político-social hondurenha estava mesmo ameaçada pelo fato de Zelaya querer se reeleger.

Em 2012, o presidente paraguaio Fernando Lugo, eleito democraticamente, sofreu um impeachment em apenas 48 horas. A maioria conservadora do Congresso Nacional golpeou Lugo se valendo de uma crise politica gerada pelo confronto entre policiais e camponeses num ato de reintegração de posse de uma fazenda. O processo cerceou o amplo direito de defesa de Lugo. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos condenou a rapidez do julgamento e a falta de concretude das acusações. O golpe foi dado com a contribuição da Suprema Corte Eleitoral, do Partido Colorado, das Forças Armadas e do vice-presidente Federico Franco que assumiu o cargo.

Coincidências com um enorme país fronteiriço ao Paraguai nunca foram, nem devem ser, mera coincidência. Não na América Latina que segue precisando de ridículos tiranos como bem disse aquele “antigo compositor baiano”.

Vimos agora um golpe de Estado na Turquia. Mesmo fracassado, ele reforça a noção de que uma cultura politica autoritária viceja mundo afora e contesta a hegemonia da democracia. Essa aventura golpista custou a vida de centenas de pessoas e mais de três mil foram presas. Li que os turcos ficaram traumatizados com tanques de guerra atropelando as vias públicas. Mas, como nós, eles estão acostumados com golpes, pois tiveram cinco ao longo de 56 anos. O presidente Recep Erdogan proclamou que a democracia havia saído vitoriosa. Vitória de Pirro essa, pois um sistema democrático só se consolida quando seus procedimentos e instituições funcionam livres de ameaças golpistas. Cada tentativa de golpe intensifica a ideia de que sistemas de força são mais eficientes para lidar com crises econômicas e politicas.

O prêmio Nobel Adolfo Pérez Esquivel aqui esteve e se assustou com tantos brasileiros defendendo golpes e ditaduras. Ele lembrou Honduras e Paraguai, que afastaram presidentes através do ordenamento jurídico e tendo o Parlamento como protagonista da ação golpista. Temos uma nova modalidade de golpe de Estado que se respalda nos entulhos autoritários que as constituições trazem. Continua-se depondo presidentes eleitos, mas agora é a elite político-partidária quem dá cabo das ações golpistas, contando ou não com o apoio das Forças Armadas. Senão, vejamos o atual caso brasileiro.

No passado, o totalitarismo desafiou a democracia que espalhou suas ideias numa primeira onda de democratização a partir de 1945. Os rigores da Guerra Fria fizeram surgir uma segunda onda de autoritarismo militarizado na década de 1960. No início dos anos 1980 ele caiu em desuso e uma terceira onda de redemocratização se fez sentir em que pese países como Brasil, Honduras e Paraguai terem se tornado democráticos sem reverem seus passados autoritários. E agora, o que temos? Seria uma quarta onda de reversos golpistas comandados por Parlamentos e Judiciários? Temos um padrão ou esses exemplos são pontos fora da curva?

Sistemas políticos que mesclam elementos autoritários com procedimentos democráticos são cada vez mais comuns. Na “Primavera Árabe”, as revoltas populares contra governos queriam deter anacrônicos ditadores, mas não se falava em democracia. Defendia-se eleições livres, mas se fechava os olhos para liberdade de culto e expressão. Lutava-se pelo fim da opressão estatal, mas as mulheres não podiam participar das manifestações.

A democracia, como sistema e cultura política, é cara ao Ocidente, onde as revoluções burguesas vingaram e as ditaduras totalitárias serviram como contraste. A democracia tem valor universal, do contrário a luta pelos direitos humanos não se daria no Irã, por exemplo. Cultura não é variável independente, com papel central no mapeamento de fenômenos. Ela não explica e nem justifica tudo. Se assim fosse, a democracia seria inviável, inclusive na Europa. O arcabouço jurídico de um Estado pode afiançar ou cercear a lei que serve tanto às democracias como às ditaduras. Essas são as questões que podem iluminar o debate sobre em que sistema politico é melhor viver.

Ontologicamente, temos Alexis de Tocqueville (“A democracia na América”), para o qual a democracia é o somatório (em doses iguais e sem hierarquias) de liberdade e igualdade. Realisticamente, serve a descrição minimalista procedural do cientista político Scott Mainwaring que, em “Classificando Regimes Políticos na América Latina”, diz que democracia é o regime que (1) promove eleições competitivas, livres e limpas; (2) que pressupõe uma cidadania adulta e abrangente; (3) que protege liberdades civis e direitos políticos; (4) onde governos eleitos de fato governam e militares são controlados pelos civis.

Proponho um exercício simples. Verifiquemos se esses quatro itens são de fato praticados em nossa sociedade. Se a resposta for sim, ótimo!, vivemos em uma democracia minimamente consolidada. Mas, se a resposta for não, sugiro que comecemos desde já a ler tudo que pudermos sobre ditaduras.

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