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Um certo Joaquim Maria

Gorjeta gorda antes da conta virou uma taça na estante de mogno

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Não descarto a possibilidade de já ter esbarrado com aquele homem, que, em idade, provavelmente regulava com a do meu falecido pai. Talvez me deixei ser enganado pela maneira austera de se vestir. Seja como for, era mais velho do que eu e um tanto mais moço do que meu avô, que mal cheguei a conhecer.

Pois lá estava o dono de cavanhaque tão distinto, apesar de bastante popular por aqueles tempos. Sóbrio, parecia mordiscar metodicamente cada salgado folhado diante de si. Alguns goles longos na limonada. Não tardava, voltava o olhar vago em busca de possível aconchego.

Tive ímpeto de me fazer notado. Caminhei alguns passos em sua direção, o olhar fixo, mas, assim que o meu alvo se virou, também o fiz, mas em outra direção, como se procurando alguém com quem tivesse marcado um encontro. Pura interpretação de ator medíocre, coisa que sempre fui. Por sorte, alguém ao fundo da Confeitaria Colombo acenou para mim.

A princípio, não reconheci aquele rosto, até que me aproximei. Era tia Maricota, irmã mais moça de meu pai. Ela estava acompanhada da filha, Maria de Lourdes, que, para meu alívio, havia desistido de firmar compromisso justamente comigo. Na verdade, nunca acreditei em amores entre primos, muito antes de saber que os frutos podem vir estragados.

As duas bebiam chá, enquanto dois quindins repousavam docemente sobre a mesa. Quando menino, era meu quitute favorito. No entanto, homem quase feito, buscava sofregamente pelo sal na comida. Se bem que, de vez em quando, pegava um naco de cocada e o levava à boca, talvez como lembrança de tempos de criança.

O garçom se aproximou. Fiz o mesmo pedido do dono do cavanhaque distinto, certamente na ânsia de me aproximar dele. As parentas sorriram, como se percebessem como aquele garoto de outrora havia crescido. Devolvi o sorriso, enquanto tentava cofiar o ralo bigode, que teimava cultivar, apesar da quase total falta de pelos.

— Que coincidência, Julinho.

— Não entendi, tia.

— A limonada e o folhado.

— Não gosta?

— Você bem sabe que sou mais afeita a doces.

— Já sou crescido para doces.

— Percebe-se, Julinho.

— Mas a senhora estava falando sobre coincidências. Que coincidências?

— Reparou que você fez o mesmo pedido do Joaquim Maria?

— O escritor?

— Sim. Ele está sentado logo ali. Você passou por ele. Não percebeu, Julinho?

Olhei para trás e fingi espanto. Na certa, tia Maricota e Maria de Lourdes não desconfiaram da minha pequena mentira ou, por sorte, guardaram segredo para evitar pendengas desnecessárias.

— Onde estava com a cabeça, que nem notei tamanha presença?

Minha prima riu e o pequeno ruído chamou a atenção do mais distinto cliente da confeitaria. Trocamos olhares e, num ímpeto de mocidade, ergui a taça de limonada. Ele fez o mesmo, o que me encheu de regozijo.

Não tardou, meu companheiro de limonada saiu do recinto. Tive vontade de ir até ele para cumprimentá-lo, mas minhas pernas bambas não me permitiram. Entretanto, assim que o garçom recolheu a taça do Joaquim Maria, chamei-o. Tomei-lhe a taça das mãos e coloquei uma nota graúda no bolso da camisa. E, antes que alguém percebesse, apesar dos olhos espantados das minhas parentas, que a tudo viram, a escondi no bolso interno do meu paletó.

Pois bem, eis que estou aqui sentado na sala da minha casa, cercado de netos barulhentos. Em frente, na ampla estante de mogno, lá está aquela taça, que me custou o dinheiro que não possuía na época, mas que, ainda hoje, me é tão cara.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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