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Pinga e pongue

Goteira de água que anima acaba em testa ardente

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo/Reprodução Freepik

Curioso até dormindo, pesquiso sobre tudo que posso, especialmente pelo que não posso. Embora acredite em reencarnação, com o amigo Valdemiro Schneider aprendi que a vida que se vive jamais será vivida novamente. E não há hipótese de voltarmos como somos. Eis a razão pela qual tenho um documento pronto e registrado em cartório para, no dia do meu passamento, ser entregue a quem de direito. Não peço nada de extraordinário ou de impossível. Na verdade, o pedido nem é inédito, visto que já foi feito, em vida, pelo embaixador, poeta e magistral compositor Vinícius de Moraes.

Posso retornar pobre, feio e triste, mas exijo o bilau um pouquinho maior. Não precisa ser exagerado, mas que seja eterno enquanto dure. Discorrer sobre temas complexos como esse realmente não é o meu forte. Também não sou pinguço, mas está aí um assunto que domino. Sou craque e habitué na arte de resgatar e remover bebuns dos botecos da vida. Cumpro todas as obrigações inerentes a um resgaste exitoso. Nunca usei aquilo que do bêbado não tem dono. Posso até dar banho no indigitado, mas não me furto a dormir entre o casal durante todo o sono do resgatado. Vai que ele tem um soluço mais forte durante a madrugada…

O risco é grande, mas costumo me comportar. Ainda em trajes menores, quando o sujeito acorda me sinto na obrigação de mostrá-lo o lindo caminho da marvada cana. Na primeira página, leio em voz alta que tudo começou com os escravos, os quais, para conseguir melado, o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou. Longe das vistas do feitor, a saída foi esconder o melado que, obviamente, amanheceu fermentado. Deu errado, mas deu certo.

Nas páginas seguintes, conto que a genialidade humana misturou o melado azedo com um novo e levaram os dois ao fogo. O resultado é consumido até hoje por todos os brasileiros e estrangeiros, incluindo o amigo Valdemiro. O azedo do melado antigo virou álcool que, aos poucos, foi evaporando e formou no teto do engenho umas goteiras que pingavam constantemente. Era a cachaça já formada que pingava. Daí o autoexplicativo nome ‘Pinga’. Na página final, mostrei tecnicamente o que também é óbvio.

Quando batia nas costas marcadas com as chibatadas dos feitores, os escravos urravam, pois a pinga ardia mais do que a dedada de um urologista bruto no cio. Por isso, os pobres coitados acabaram por batizar o tal pingo de ‘Água-Ardente”. Era um frenesi a goteira caindo em seus rostos e escorrendo até a boca. Após a descoberta pingante, os escravos perceberam que a cada gole ficavam alegres e cada vez mais com vontade de dançar. Quando caía a noite, o problema era saber quem era a mulher de quem. Pela manhã, nem sempre era só a testa que ardia.

Contam os historiadores que eles repetiam o processo sempre que queriam se sentir felizes. Em silêncio absoluto, meu pinguço interlocutor pulou da cama onde estávamos – eu, ele e a patroa destilando alegria por todos os poros – e, com cara de poucos amigos, me fez a pergunta que não precisava ter ouvido: “Você usou meu precioso e perfumado tonel essa noite?” Diante de meu fúnebre silêncio, restou ao já ex-amigo apenas duas certezas. A primeira é que beberam no seu cálice dourado. A segunda é que não basta beber. É preciso saber como se constrói a história de um ex-marido sem chifres. Pelo menos, consegui transformar mais um simples pinguço em um cachaceiro bem-informado. Resumindo, às vezes o que pinga pode acabar em pongue.

*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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