Anormal, fora da curva e definitivamente longe da órbita, o Brasil que nós queremos não é o que estamos vivendo. As narrativas alegóricas do presidente da República e de seu séquito mais próximo estão cada vez mais distantes da realidade e absolutamente dissonantes dos preceitos básicos de moralidade e de governabilidade. Para qualquer leigo, o governante de nossos dias é uma aula prática de adultério com o eleitorado que acreditou em sua aptidão para o cargo. Convictos ou não, quase 55 milhões de brasileiros votaram em um candidato que se consolidou como utopia administrativa, fracasso econômico, desagregador político e, principalmente, péssimo gestor da crise sanitária que se instalou no país e que já matou mais de 450 mil pessoas.
Por obra do destino e da ganância governista do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), ainda não houve vontade política para avaliar nenhum dos quase 120 pedidos de impeachment do presidente da República. Embora 49% do eleitorado tenha se manifestado favoravelmente à iniciativa, nada de pautá-la. Sem apoio das Forças Armadas, com a popularidade no solado do sapato e com Luiz Inácio mordendo seus calcanhares e pescoço, Bolsonaro resolveu partir para a ignorância violenta. Debochado, insano e “obsceno”, conforme o jornal britânico The Guardian, o passeio de moto da trupe bolsonarista em plena pandemia foi o primeiro ato na tentativa de vitaminar os extremistas contra a ira do povo que começou a acordar da vilania e da sonolência fundamentalista. Graças a Deus, nunca é tarde para um despertar feliz. Também devemos agradecer ao céu por nos lembrar que não há pior vilão do que o vilão consciente.
O segundo talvez seja a última cena militar de seu principal defensor e novo ajudante de ordens, o ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Além da intenção deliberada e irresponsável de politizar o Exército, Pazuello posou ao lado de Bolsonaro confiante em uma provável futura candidatura. Tudo indica que a postulação ficará na probabilidade, considerando não só a absoluta ausência de votos, mas, principalmente, o descumprimento de uma das principais regras disciplinares do regulamento interno do Exército: a participação de militares da ativa em atos políticos. Um novo depoimento à CPI da Covid deve ser o divisor de água da vida profissional e da relação do general com o ocupante número 1 do Palácio do Planalto. A defesa canina e a luta pela “legitimação” de Bolsonaro como presidente preocupado com a pandemia tendem a desmoronar na primeira pergunta.
E não é só Eduardo Pazuello que terá de se explicar a determinado colegiado. Enroscado até a medula com despachos de cargas de madeireiros clandestinos sem liberação oficial, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ainda não conseguiu sanar dúvidas da Polícia Federal a respeito dos malfeitos ambientais, entre eles suspeitas de envolvimento em um esquema de contrabando de madeira para os Estados Unidos e a Europa. Embora não torça por isso, o governo parece bem próximo do ocaso. É cristalino o crescimento do colapso político do mandatário. E até o Exército (o que ele serviu e de onde saiu pela porta os fundos) faz tempo deixou de ser “seu”. Somente pessoas desprovidas de bom senso poderiam imaginar que em pleno século XXI os militares poderiam repetir 1964, quando o Brasil realmente era uma república de bananas.
Hoje, passados 57 anos da ascensão dos marechais ao poder, improvável que o Exército, a Aeronáutica e a Marinha se revoltem contra o povo para atender devaneios insanos de um presidente. Mais importante é que, para o mundo globalizado, um golpe militar na oitava economia do mundo não é a mesma coisa que um levante na Turquia, na Venezuela ou na Nicarágua. Os ares são outros. Como gosto de lubrificar memórias petrificadas, o tempo, a vida, as palavras e os gestos são os maiores algozes do ser humano. O esquecimento desses detalhes pode comprometer os trilhos. Pior é aliá-los a comportamentos hostis, belicosos, golpistas e absolutistas. Nesse caso, o trem descarrila de vez. Parto do pressuposto de que ninguém pode ser tão perfeito usando máscara. Por isso, não gosto de heróis. Para a meia dúzia de fanáticos que ainda acreditam em contos de fadas, melhor esperar a moral da história.