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A duras penas

Gudesteu ensina segredo a Nicanor e Júlio enriquece

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

Gudesteu Neiva, por mais de 40 anos, foi o principal contador na cidade de Nova Iorque. Não havia boa firma ou casa de comércio que não lhe contasse com os serviços. Organizava os livros, os impostos, as notas fiscais… E não falo da Nova Iorque dos Estados Unidos, que lá é terra muito fria, distante. A Nova Iorque de Gudesteu era logo ali, no Maranhão, na divisa com o Piauí, cidade fundada pelo engenheiro norte-americano Edward Burnet, que, em 1890, estando no comando de obras para desobstruir o tráfego fluvial pelo rio Parnaíba, fixou-se perto do município de Pastos Bons e fez dali sua morada, logo fundando a cidade cujo nome homenageava sua terra natal. Gudesteu começou a profissão na velha Nova Iorque, que foi inundada pelo lago da represa da Hidrelétrica de Boa Esperança lá pelos anos de 1960.

Praticamente, só duas coisas foram levadas da velha para a nova Nova Iorque antes da inundação: o corpo da santa Mariquinha Fonfon, exumado do antigo cemitério, e o cofre que ficava na casa de Gudesteu, onde era também seu escritório de contabilidade. O cofre deu mais trabalho que a santa.

O fato é que, durante toda a sua carreira, Gudesteu ganhou muito – dinheiro e reconhecimento – e gastou pouco. Morava em modestíssima alcova na parte de trás do conjugado que, na sala, lhe servia de escritório. Porta e janela pra rua, cuidadosamente trancadas à noite. Mas, se não fossem, quem se atreveria a violar os domínios de Gudesteu? Cidadão muito conhecido e prestante, tinha o respeito de todos. E era pobre, ou ao menos se comportava como um verdadeiro. Mas o cofre era grande, pesado, grossíssimo. Ninguém sabia o que havia dentro.

– Documentos, dizia um.

– Barras de ouro e dinheiro, arriscava outro.

– Informações comprometedoras, vaticinava um terceiro.

Apesar de ter irmãos e sobrinhos, Gudesteu vivia só. A solitude era quebrada apenas pela companhia de Nicanor, que não saía do seu lado. Nicanor era um papagaio, de penas bem verdes e lustrosas. Inteligente, tinha aqueles olhos sempre arregalados e espertos. Bravo, não deixava que ninguém chegasse perto de seu dono que logo armava um voo e uma bicada certeira. Como o contador, o papagaio também falava pouco. Às vezes, daquele jeito rouco que tem todo papagaio, dizia coisas que só Gudesteu entendia.

Não raro o louro estava empoleirado perto da janelinha em frente à qual, quem passasse, veria Gudesteu de costas trabalhando em sua mesa colada ao grande cofre. Paravam na janela e diziam:

– Currupaco, seu louro. Dá o pé…

E o bicho taramelava:

– Seeeis… Direita, Ooooito. Esquerda.

Talvez de tanto conviver com Gudesteu, o papagaio Nicanor tivesse aprendido os números. Ocorreu que, um dia, como quem não quer nada, a indesejada das gentes veio fazer uma visita a Gudesteu. Como passasse de meio-dia e ele não abrira o escritório, algum cliente que viera trazer-lhe umas guias para o pagamento de impostos estranhou. Bateu à porta e ele não atendeu. Foram abrir, estava morto, sereno, na cama da alcova, logo atrás do tal cofre. E o papagaio Nicador lá, no poleiro da papagaieira:

– Noooove. Direita.

Foi uma comoção geral. Velório na câmara de vereadores, missa, cortejo fúnebre, até colocarem o contador pertinho da Mariquinha Fonfon.

Ainda no fim daquele dia, os irmãos e sobrinhos de Gudesteu reuniram-se em sua casa perguntando-se o que fariam com o cofre.

– Aqui não tem quem o abra. Precisa chamar alguém de São Luís.

– Ou de Teresina.

– E o papagaio?

– Esse é bravo, não quero. Bica.

– Solte na Praia do Caju. Ele se vira.

A preocupação geral era o cofre. Já combinavam como seria a divisão de seu conteúdo sem sequer abri-lo. Júlio, o sobrinho mais novo de Gudesteu, filho do finado Arquimedes, é que tomou o partido do bicho:

– Marróia, vocês ficam falando de cofre. E o papagaio? Quero cuidar! O bichinho deve estar brocado de fome.

– Piqueno, tu é o raio, disse, em aprovação, o outro tio, Perácio. – Fique, pois, com o papagaio.

– Mas e minha parte no cofre? – quis saber Júlio.

– Rapaz, fique com o papagaio e dê-se por satisfeito. Onde já se viu?! Tá exigente! Fica o papagaio pra tu e o resto pra nós. Fique satisfeito e cale sua boca.

Júlio ficou contrariado, mas engoliu a seco.

Combinaram os demais que só iriam remover o cofre quando o tivessem aberto e, de comum acordo, dividido o seu conteúdo. Se não desse em nada, ao menos poderiam vendê-lo para quem o aproveitasse. Era apenas o caso de achar quem abrisse e trocasse o segredo. Mas quem prestaria o serviço? Não faziam ideia.

Já o pequeno Júlio, tão franzino aos 19 anos que passaria por um garoto de 14, tentou pegar o papagaio e levá-lo para casa. Como levou boas bicadas, resolveu ficar dormindo na casa de Gudesteu mesmo. Todo dia alimentava a ave e tentava fazer amizade com ela. E ficava ouvindo:

– Doooois… Ciiiinco, esquerda. Trêêêês, direita.

Ao cabo de alguns dias daquilo, deu-lhe um estalo.

– Espera, agora me lembro. Fiquei ouvindo meus tios conversarem. O cofre se abre girando esse botão numerado. Pra esquerda, pra direita… com esses números. É a tal combinação!

Gudesteu, que nada disse a ninguém, havia ensinado ao papagaio a combinação para abrir o cofre. Era apenas uma questão de anotar o que a ave falava e ir tentando, dia após dia, prestando bem atenção no bicho e encontrando a ordem certa. Mas isso para os outros. Júlio, que era sagaz e maroto, na mesma tarde, partindo de seis à direita, foi fazendo as combinações e destravou a porta do enorme apetrecho. De vingança, nem sequer foi avisar aos irmãos e tios, que o queriam passar para trás, sobre o fantástico conteúdo que encontrou. Preferiu correr o mundo, indo embora ainda de madrugadinha.

Nunca mais foi visto. Soube-se, apenas, que levou também o papagaio, e nem se importou com algumas bicadas que ia levando pelo caminho.

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