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As reflexões do viúvo

‘Havia dois de mim.. e Deus era uma mulher preta’

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

Andava para mais de seis meses que eu mal me levantava da cama. Tinha uma fraqueza, as pernas bambas, as faces magras, respiração curta. Os frequentadores dos serões em minha casa sumiram. Vinha agora apenas o doutor, que sempre apresentava sua conta, e o padre. Sabina foi quem mais se preocupou comigo. Era a empregada, viúva de um camarada que trabalhava para mim, e que ficou na fazenda fazendo os serviços da casa. Ajudou muito depois que eu casei.

A patroa, filha de um ricaço que disputava limites com minhas terras, tinha umas manias estranhas. Gostava de livros, de ficar na rede, de afiar as unhas. Fumava um cigarro branquinho, numa piteira enorme. Havia sido criada na capital, em escola de moça fina. Definitivamente não combinava com aquele ermo onde foi se enfurnar depois de casar comigo. Margarida, mulher letrada, havia de ser infeliz com um homem ignorante como eu, acostumado à dureza e à luta, uma rotina que, por vezes, até duvidei poder enfrentar porque pensava me faltarem as forças. Mas venci e, nessa faina, cheguei até aqui. Uma boa propriedade, um rebanho bovino regular, apicultura, plantações, a mata onde derrubávamos árvores de madeira nobre, cortada na serraria. Uma riqueza até não mais poder. Mas isso tudo não tinha, afinal, me servido de nada.

A mulher foi-se me um dia. Andou de conversas com um cabra da cidade, ladino, folgazão, cheio de leituras que nem ela. A pretexto de discutir comigo a política local, onde eu já vinha mandando, visitou minha casa sempre que teve oportunidade, na hora da janta, com o vigário, com o professor, com o doutor promotor, com o prefeito e com o inspetor de quarteirão.

Um dia, Malvino, o cabra que me servia mais de perto com uma lealdade canina, veio me avisar que, depois de fazer as malas, Margarida havia entrado no Forde e tocou pra cidade, onde o almofadinha lhe estava esperando. Mandei campanar o hotel onde eles se hospedaram. Ela deixou o Forde no posto de gasolina e falou pro gerente mandar virem me avisar, na fazenda, que o automóvel ficou lá. Mas a cabroeira que estava na cola deles me deu conta do serviço na medida. Antes que chegasse o trem onde Margarida ia fugir com o safado, ele levou uma facada nas costelas que quase lhe atravessou o bucho. Já a patroa foi convencida pelos capangas a voltar para casa, onde era vigiada noite e dia.

Um dia, a pobre resolveu manusear um revólver que eu tinha na gaveta da cômoda e acabou virando retrato de louça no cemitério da igreja de São Pedro. A sepultura dela é a mais alta, a mais branca do cemitério. Mandei escrever na pedra somente “uma santa”. Mais nada. Nenhum nome, nenhuma data. Afinal, a história acabou na boca do povo, e era preciso criar uma versão diferente. Esse tributo de amor conjugal calou a maledicência de muita gente, e assim ficou. Para todos os efeitos, o finório foi espetado numa peleja que ninguém viu como começou – deram conta somente do cabra sangrado, caído no pátio da estação. O inspetor de quarteirão abriu inquérito, que acabou inconclusivo e o assunto sumiu.

Mas como eu disse, isso tudo não me havia servido de nada na condição em que me achava agora. Fraco, doente, sozinho, acabei deixando de lado a lavoura, o rebanho, a serraria. Não tomar conta das próprias coisas leva os camaradas ao relaxo, à dissipação. Aquele povo besta, mais afeito à cachaça e à pândega que ao trabalho, acabou por arruinar tudo sem eu ficar em cima para tomar conta. As plantações estavam de dar pena. A apicultura malogrou. As serras de corte enferrujaram, emperrando a máquina. Foi uma desgraceira.

Ainda tinha a esperança de arribar e sair da cama, para retomar o controle do que me pertencia. Às vezes me sentia mais forte depois de um caldo que Sabina me fazia. Mas houve vezes em que, ai, até o padre fora chamado para me dar a unção dos enfermos. Não cria muito, mas não estava em condições de rejeitar.

E eu me virava nesse chove-não-molha até que, uma manhã, acordei revigorado. Puxei uma lufada de ar enchendo os peitos como há muito não fazia. Deu-me vontade de gritar, soltar uma gargalhada, de cerrar os punhos e cantar como o galo rei do terreiro, de tão bem que estava me sentindo. Levantei da cama e meti os pés nas chinelas como antes não podia fazer, pois andavam tão inchados que mal cabiam dentro. Saí do quarto e andei pelo corredor chamando Sabina. Tinha enfim ânimo e força.

Mas estranhei o ambiente em que me achava. Em vez da tinta gasta nas paredes do corredor, de um amarelo pálido como havia ficado desde a última reforma, ainda nos tempos de Margarida, a pintura estava imaculadamente branca. E haviam sumido os quadros pendurados, gravuras antigas com cenas de campo e de caça, que ficaram dos donos anteriores.

Quanto mais eu avançava, mais estranhava a casa. Fui aonde costumava ser a cozinha e não vi nada. Nenhum objeto de louça ou de metal havia sobrado. O fogão estava como novo, sem qualquer marca de fuligem da lenha queimada. Achei surpreendente aquilo tudo.

Gritei Sabina mais uma vez, e ninguém me respondeu. As portas para os outros cômodos pareciam trancadas. Tampouco reconheci a sala, sem os tapetes, sem o grande lustre pendente, sem o gramofone que Margarida havia mandado trazer de Maceió e tocava Berlioz. Tudo impecavelmente branco e limpo. Vazio.

Fiquei ali dois quartos de hora matutando e pensei em enrolar um cigarro, como tantas vezes havia feito sentado no primeiro degrau da varanda da sala. Não achei o picador, nem o fumo, embora tirasse do bolso do pijama a palhinha. Fiquei encafifado.

Pus a vontade de fumar de lado e saí em direção ao terreio. Não achei nenhum pé de planta, e parecia que a casa havia sido transportada para outro lugar. Era tudo envolto numa névoa estranha, densa, daquelas que muitas vezes já tinha visto subir do chão em dias de calor, depois de chuva forte. Peguei o caminho que dava pra serraria e custei distinguir o telhado alto, que sempre via em meio à copa das árvores. Em vez de árvores, só aquele cinza esquisito, que já me dava nos nervos. Nem pensei em procurar Malvino naquela hora, pois ele certamente saberia o destino da Sabina e que diacho havia acontecido com o resto.

Andei muito mais tempo do que o normal para lá chegar, mas afinal achei o portão da serraria, que estava aberto. Lá dentro, em lugar das ferramentas e das toras de madeira que ficavam armazenadas, em vez das pranchas aplainadas que fazíamos pra vender ao comércio, havia uma espécie de trono, bem alto, com uns pedregulhos em volta. E no trono, sentada, uma mulher. Sim, uma mulher bonita, de pele preta, olhos expressivos, os ombros bem recortados à mostra num simples vestido branco. Ao lado dela, um objeto soltava uma fumaça com cheiro de hortelã e sálvia.

Fixei bem as vistas nela, pois cheguei a pensar que seria a mulher de um dos trabalhadores da fazenda, mas não a reconheci.

Falei pra ela:

– Boa tarde, moça.

Nem sabia se era mesmo boa tarde, pois não reparei na hora que fazia quando saí da casa para me embrenhar naquele ambiente estranho. Ela nada respondeu, apenas ficou me olhando atenta. Senti algo de pena, comiseração no olhar que ela me lançava, mas também uma certa altivez. Era como se ela adivinhasse tudo que se passava pela minha cabeça quando a olhava. A curiosidade sobre quem era, o que estava fazendo ali, a vontade de saber sobre quem havia feito e com que ordem as mudanças no interior da serraria. Todas essas ideias me chegavam pelo atacado, ao mesmo tempo, e a mulher ali, muda, silenciosa. Prossegui, perguntando:

–  Quem é a senhora?

E nada de ela me responder… Fiquei aperreado. Ela ali, nas minhas terras, uma pessoa desconhecida, que eu nunca vira. O que estava acontecendo?

Pareceu que ela adivinhou meu pensamento, porque finalmente falou:

– Eu só estou aqui para ver você perdido, observar… Ouvir o que você anda pensando e o que vai fazer agora. Quanto tempo levará para você atingir o arrependimento pelas maldades que praticou nesta vida? Você vai achar a saída.

Intriguei-me. Por que a mulher estaria interessada em mim, no que eu estava pensando ou ia fazer? Não entendi nada. E essa audácia de me acusar de maldades? Certo é que nem sempre andei bem na vida. Para conquistar o que conquistei, em numerosas ocasiões tive de apear de certos escrúpulos. Nem toda vez, entretanto, agi de forma diversa daqueles com quem tratei.

Na vida que tive a gente engole, ou é engolido. Até lembro de ter ouvido uma vez de um outro fazendeiro que, às vezes, a gente faz várias coisas boas e não dá resultado nenhum. De outras, uma coisinha má que a gente cometa, produz uma porção de resultados bons…

Mas vir essa desconhecida agora e falar em arrependimento? Diabos! Coisa íntima minha, que eu não confessei nem para o padre, pois não acredito nessas coisas de confissão. Nem de comungar. Tomava a hóstia na missa por uma razão social. Era importante ser visto como praticante da religião na frente do povo. Quanto aos meus feitos, ninguém tinha nada que ver com isso. Acreditava vagamente em Deus e, havendo um, a ele apenas caberia me julgar e pesar na balança quanto andei bem e quanto andei mal.

Mas a dúvida ainda me consumia. Quem era aquela pessoa?

Pela primeira vez, pensei que pudesse estar sonhando. Sim, sonhando. Até a noite anterior, lembrei-me, estava mal. Desenganado. Quase descolado da existência. Um suor frio nas frontes, uma dor aguda, aquela respiração curta, fraca mesmo. Sem vontade de nada. Os pés pareciam duas barricas de tão inchados. Foi quando me ocorreu: como é que, da noite para o dia, passei a me sentir tão bem, a ponto até de sair de casa? Por outro lado, estava tudo tão diferente agora. Não reconhecia mais os lugares da fazenda, o aspecto da casa…

Sabina havia de me chamar para me dar uma sopa ou as gotas que o médico receitara, e teria de me acordar para isso, quando eu finalmente despertaria desse sonho esquisito. Tranquilizei-me.

Foi quando ouvi um grito. Mas não era um chamado. Era um grito esganiçado, de horror! E reconheci a voz de Sabina.

Imediatamente, como se fosse mágica, fui puxado pelas costas e voltei até o meu quarto. A cena me espantou.

Havia dois de mim. Eu, que seguia de pé, pensando e sentindo, e um outro, na cama, imóvel. Sabina, assustada, esfregava meu peito, punha algo nas ventas para o outro eu cheirar, e o sacudia chamando:

– Patrão, patrão! Malvino, corre. O patrão morreu!

Morri? Como assim? Estava ali, bem vivo, observando.

Nem sei explicar o que se passou e o que senti. Indiferença. Talvez a maior sensação tenha sido esta.

Nas horas seguintes vieram o padre com uma estola roxa, o doutor, que escreveu e assinou um papel e, depois, veio o Nestor, dono da funerária, junto com o barbeiro, que ajeitou a cara daquele outro de mim que estava ali deitado, pálido, quieto. Vestiram-me a caráter e acabei num ataúde preto que foi montado sobre uma eça na sala, já recuperada de seu aspecto normal com o lustre, a tapeçaria e o gramofone que tocava Berlioz.

Não sei quanto tempo durou aquele teatro, em que várias pessoas gradas da cidade, mais os trabalhadores do eito, passaram pelo velório. Alguns compungidos, outros de cara fechada, mas tendo em comum uma sensação de desprezo pelo defunto, que ao mesmo tempo era eu mesmo e o outro, e eu conseguia sentir, não sei como, esse desprezo.

Só Malvino e Sabina sentiam, me parece, sinceramente a minha falta. Ela chorava na cozinha, e ele, mais distante da casa, fumava um cigarro enquanto olhava o céu e, baixinho, vertia algumas lágrimas de gratidão e saudade.

Em dada hora o cortejo saiu, mas eu não o acompanhei. Creio que me deixaram no mesmo lugar em que estava Margarida, não sei.

Nos dias que seguiram, nada fiz além de pensar, pensar até a cabeça doer em como sair daquela enrascada. E a cabeça não doía mais. Sentia-me inteiramente lúcido e são.

Fui e voltei várias vezes à serraria, que agora me parecia ainda mais distante, e de vez em quando encontrava a mulher preta sentada. Ela nada fazia, apenas me fitava com aqueles olhos. Volta e meia esboçava um sorriso e as feições dela se iluminavam, ficando ainda mais linda a desconhecida.

Eu pensava sobre Margarida, sobre arrependimento, sobre maldades, mas nada mudava dentro de mim. Fiz o que tinha de fazer.

Segundo a mulher misteriosa, havia de ficar por ali, vagando, enquanto não mudasse isso dentro de mim. O que haveria depois, eu não sei. Em verdade, ainda não cheguei nesse depois. Mas continuo essa rotina esquisita, indo e voltando, sem sentir fome, frio, calor, tristeza ou alegria. Simplesmente existo.

Começo a desconfiar que aquela mulher seja mesmo Deus. E uma hora dessas eu terei que me entender com Deus.

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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com

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