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As cirurgias e a abóbora

História baseada em fatos reais, antes de Brasília destronar velha Luziânia

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Não sei se você é do tipo que acredita em crendices, sejam as contadas pelo povo, sejam aquelas outras escritas em livros de capas pretas. Na verdade, isso não vem ao caso, pois a história é boa e vale a pena desfrutá-la com a alma livre de preconceitos. Ou você vai querer me dizer que nunca bateu três vezes na madeira para espantar mau-olhado?

Era o ano de 1952, quando Altamira convenceu o marido, José, a levar o pequeno Augusto, de oito anos, para Goiânia, a então nova capital do estado. O único filho homem do casal estava com hidrocele e, se a coisa desandasse, perigava o sobrenome do pai não vingar, mesmo porque a mulher não podia mais engravidar.

José, que andava às turras com uma hérnia, carecia de operar. Ele adiou o que pode, mas a situação andava de um jeito, que qualquer peso era aquele problema. E o homem precisa ter saúde para lidar com as coisas da roça.

Sem opções, José pegou o filho e rumaram para Goiânia, pois, naquela época, não existia hospital em Luziânia. Os três médicos da cidade atendiam em domicílio, mas só tratavam de lombrigueira, bicho-de-pé e outros males daquele povo. Cirurgia mesmo era na capital.

No trajeto, pai e filho tiveram que atravessar a ponte de madeira sobre o rio Corumbá, que era a única ligação com o sul do estado. Augusto ficou maravilhado com aquele mundaréu de água. Quase mudo no dia a dia, desandou a falar.

— Pai, quem é dono desse rio?

— Se não for Deus, deve ser algum fazendeiro da região.

— E tem peixe?

— Tem.

— E jacaré?

— Tem.

— Mas os peixes não têm medo de jacaré?

— Jacaré também é filho de Deus. O bicho precisa se alimentar.

Altamira, que ficara no sítio tomando conta das outras crias, chorava pelo canto. Rezava todos os dias pedindo que o marido e o caçula retornassem logo. Naquele tempo, cirurgia era sinônimo de morte. As pessoas morriam, mas não se permitiam ser operadas. Isso demonstrava o quão o marido era corajoso. Mal sabia ela que José estava adiando os passos para que a viagem demorasse o tempo que nem possuía.

Apesar da procrastinação na jornada, os dois chegaram à capital. Foram operados e, por milagre, tudo correu bem e, assim que receberam alta, pegaram o caminho de volta para Luziânia. Recompostos que estavam, apressaram o passo, pois queriam chegar logo ao sítio da família. O problema é que a ponte, único acesso sobre o rio Corumbá, estava bloqueada.

Enquanto o marido e o filho aguardavam o concerto da ponte, Altamira, sem ter notícias, arrefecia em orações. A mulher já havia percorrido todos os santos que conhecia. No entanto, até aquele momento, só pensava em algo especial para preparar para José e o pequeno Augusto. Foi até a horta para escolher uma abóbora, mas não uma abóbora qualquer.

Como a mulher havia plantado algumas sementes no quintal, resolveu colher os frutos. Catou três e, após avaliação breve, se decidiu pela maior e de aparência mais saborosa. A mulher colocou as três morangas sobre a mesa da cozinha, com a escolhida no meio.

Naquele tempo, as pessoas se visitavam com muita frequência. Rosa, moradora da propriedade ao lado, foi tomar café no sítio da Altamira. Pra quê? A mulher ficou admirada com a perfeição daquela abóbora, justamente a escolhida pela dona da casa. Ela quis porque quis levá-la, mas foi dissuadida pela anfitriã.

— Ô, Rosa, essa não dou. Vou preparar moranga com carne seca quando o José e o Augusto retornarem. Mas se você quiser, pode ficar com as outras duas.

A visita fez cara de quem não gostou. Saiu sem palavras, mas seus olhos diziam tudo e mais um tanto. Já estava escurecendo e querendo economizar querosene, Altamira apagou as lamparinas e colocou as filhas para dormir. Ela adormeceu após algumas rezas direcionadas para São Benedito.

No dia seguinte, antes do primeiro canto do galo, Altamira se levantou. Foi até a cozinha e quase caiu para trás. A abóbora reservada para o festejo de retorno do marido e do filho estava seca que nem uva-passa. As outras duas continuavam do mesmo jeito.

Não se sabe o que aconteceu com a Rosa. A mulher sumiu e ninguém soube informar seu paradeiro. Alguns dizem que ela foi para o lado de Goiânia, outros até falam que morreu afogada no Corumbá. Seja como for, após mais alguns dias, José e Augusto chegaram ao sítio da família, onde comeram moranga com carne seca durante uma semana inteira.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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