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História da sociedade não se escreve sem o uso de biografias

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Derrotando, em sessão do dia 10 de junho, por 9×0, a exigência de autorização prévia para a escrita de biografias, o STF nos consolou um pouco da goleada de 7×1 sofrida pela seleção na última copa.

Fracassados no futebol, é bom saber que ainda nos restam algumas razões de orgulho pátrio. A decisão encerrou uma luta acirrada dos defensores da liberdade de expressão, esse baluarte das repúblicas democráticas, contra seus inimigos.

Escrevi uma biografia de D. Pedro II. Toquei em temas delicados que diziam respeito à vida privada do imperador e a sua imagem pública. Embora membros da família imperial, herdeiros de D. Pedro, tivessem conhecimento do conteúdo da obra, em nenhum momento fui por eles questionado, instado a fazer modificações, ou processado, nem antes nem depois da publicação.

O imperador certamente teria aprovado a postura de seus descendentes. Nunca chefe de Estado entre nós foi mais claro e intransigente na defesa da liberdade de expressão. Ficou célebre sua resposta aos que lhe cobravam reação diante das críticas às vezes virulentas e pessoais que se lhe faziam: quem controla a imprensa é a própria imprensa, disse ele. Não podíamos regredir a tempos anteriores ao Império.

Sou historiador. Biografias constituem parte do campo da historiografia. Mais ainda, a história não pode ser escrita sem a biografia, isto é, sem atenção à vida daqueles que ajudam a construí-la. O estudo da vida de protagonistas da história e mesmo, e cada vez mais, de simples cidadãos, voltou a ser instrumento indispensável ao conhecimento de uma época histórica, em suas dimensões política, social e cultural.

Para serem confiáveis, história e biografia dependem das mesmas quatro liberdades: liberdade de acesso às fontes, liberdade de interpretação, liberdade de escrita e liberdade de publicação.

Submeter a escrita de biografias a censura prévia é desmoralizá-las. É torná-las autobiografias terceirizadas ou press releases do biografado. É tornar o leitor e o cidadão vítimas de uma fraude de que não se podem defender.

Em última instância, a censura prévia de biografias, e por extensão, da escrita da história, priva o leitor e o cidadão do acesso ao conhecimento de suas próprias sociedades. Se algo constitui patrimônio público de um povo, de cuja defesa trata o artigo 129 da Constituição brasileira em seu inciso III, é o conhecimento de sua própria história.

A defesa da censura prévia por parte das chamadas pessoas públicas, além de inconstitucional, é incoerente. Essas pessoas são públicas porque optaram por uma vida pública, na política, nas artes, nos esportes, na mídia, nas redes sociais. Elas vivem do apoio do público, dos eleitores, dos leitores, dos seguidores, dos espectadores, dos consumidores.

Ora, viver do público, cortejar o público e, ao mesmo tempo, privá-lo da liberdade de se manifestar sobre elas, inclusive sobre suas vidas privadas, servir-se do público e não querer servir o público, constitui incoerência, além de revelar visão tosca de posição que ocupam na sociedade.

No caso dos artistas, essa visão amesquinha o próprio papel social que representam e que os torna parte integrante da cultura nacional. A decisão unânime do STF nos repõe no caminho da república e da democracia, ainda tão maltratadas entre nós.

José Murilo de Carvalho

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