1.
Clotilde nasceu numa ilha.
Menina diferente de todas.
Vagava em seu mundinho de cabelos-de-fogo.
Foi crescendo entre barcos, dunas, lagoa e o mar.
Um dia se achou crescida o suficiente.
Decidiu meter o pé na estrada.
E assim foi.
2.
Logo aprendeu a subir em árvores.
Pegou ondas com a pranchinha de surf.
Fez todo tipo de castelos de areia.
Foi crescendo, crescendo e virou uma linda mulher.
3.
Num dia encontrou a dança.
Noutro, a música.
Logo após veio o cinema.
E Clotilde seguiu sonhando.
Nunca mais parou de sonhar…
E de circular nas imagens,
Circular…
4.
Voou por outras dunas em furacões de areia.
Nadou feito peixe de cristal na lagoa encantada.
Aqueceu o sol nos dias frios.
E aconchegou a lua nas noites sem estrelas.
5.
E, então, veio o tempo da escola.
E as dúvidas da moral.
A menina já sabia ler e escrever.
E já era maluquinha também.
Construía histórias e inventava contos.
Invocava forças e virou uma menina bruxa-feiticeira.
Clotilde era mesmo danadinha.
Só sabia inventar.
Mas jamais deixara para trás suas amigas inseparáveis:
Nanda-Sofia.
6.
E foi nessa época que passou o circo.
E Clotilde decidiu viajar.
Aprendeu malabarismos e palhaçadas com o
Costelinha, um palhaço secular.
Foi viajando por todos os lugares
E, por um segundo, Zásss!
Lá voava a menina para um novo mundo.
7.
E veio então um outro tempo: o do amor
E Clotilde se apaixonou.
Como toda pessoa sensível, ela também sofreu, mas não perdeu o rumo e muito menos a imaginação.
Viajou para Marte.
Voou com Pégaso pelas coisas da Grécia.
Chamou Mercúrio de “meu curativinho”.
E depois voltou para a Terra.
E foi aí que ela decidiu que a vida seria um grande parque de diversões.
8.
Ficou na dúvida: o que fazer?
Pois já fizera de tudo?
Costelinha, então, lhe falou.
“Clotilde, estamos precisando de uma Mulher Gorila no parque. Topas?”
E Clotilde topou.
Mesmo sem saber daquela mágica, lá foi ela ser:
MONGA, A MENINA GORILA.
9.
Ser Monga era muito diferente, coisa de magia especial.
A menina entrava numa jaula e a plateia delirava.
Com reflexos de espelhos, ela virava a fera, por pura imagem.
A gravação dos urros de Monga e os movimentos tentando abrir a jaula, assustava e encantava a multidão.
Ilusionava o mundo.
Virou uma celebridade.
10.
Mas tudo não passava de um sonho, imaginação.
A menina e a fera habitavam a mesma pessoa.
Clotilde foi aprendendo a conviver com as duas criaturas.
E então decidiu assumir as personas interiores:
Passou a ser Clotilde-Nanda-Sofia.
E assim seguiu, construindo histórias.
11.
Em todos os lugares do mundo só falavam de Monga.
Clotilde-Nanda-Sofia, as meninas encantadas que viravam gorila num passe de mágica.
Todos sabiam que era apenas um truque, mas pagavam muitos dinheiros pelo momento de êxtase.
Adoravam o susto, o espanto, a vertigem.
A ilusão.
12.
Clotilde sorria e achava tudo muito engraçado.
Sorria, como sempre aprendera a fazer em confronto com a vida.
Continuava a correr livre pelas dunas, nadando na lagoa e voando pelos espaços da ilha-país de sua imaginação.
Mas um dia veio o tempo da solidão.
13.
Ser MONGA não encantava mais.
O espanto da plateia já não atraia o mistério nem a vertigem.
Sentia falta dos castelos de areia, do pai e das histórias.
Do desafio de subir em árvores.
Da magia das dunas e do imponderável.
Sentia falta do seu lugar, de sua identidade.
Sofria, sofria muito, pelo o que faltava.
E queria buscar um conforto na memória.
E mais uma vez, MONGA a socorreu.
14.
E foi então que Clotilde-Nanda- Sofia inventou um outro lance.
O caminho pela vida, agora, seria assim mesmo.
Cheio de idas e vindas.
“A travessia é o mais importante.
Tudo feito de luz e mistério.”
Largou tudo: o parque, o circo e o país da imaginação.
Voltou para a ilha e procurou um sentido de vida para ser feliz.
Hoje, Clotilde é uma mulher-mãe bem resolvida.
Daquelas que fazem rendas nos bilros, estendem roupas nos varais e amamentam os seus filhos nos bicos dos seios.
15.
Outro dia encontrei Clotilde nas dunas e perguntei por Nanda-Sofia.
Clotilde sorriu e depois nada me falou.
Apenas seguiu em frente.
Olhei atentamente para os pezinhos dela -ainda de menina- e enxerguei
Nanda-Sofia.
Os pezinhos deixaram delicadas marcas na areia.
Lembrei-me de seus cabelos-de-fogo e da barra desbeiçada de seu vestidinho amarelo e da fita branca na cintura com as pontas soltas ao vento.
16.
E foi então que veio uma brisa leve do mar.
Era um novo tempo.
Ainda guardo comigo a imagem-movimento de Clotilde-Nanda-Sofia correndo
pelas dunas da ilha.
Cantando e chamando por MONGA, A MENINA GORILA.
E feito reza de encanto, tudo vira memória, paz e sertão lá pras bandas da grande lagoa.