Comadre Sabina era louca pelo marido, compadre Alcebíades, vulgo Bide. O casal possuía oito herdeiros e, devido à saúde não tão boa do homem, que bebia muita pinga de alambique e fumava demais. A fábrica de filhos, todos meninos, parecia fechada há tempos, ainda mais porque o caçula já beirava os 13 anos.
A família morava em um sítio em Luziânia, . Viviam uma vida dura, mas ninguém reclamava, pois todos, logo cedo, aprenderam que aquilo era desígnio de Deus. Sem entendimento e tempo para pensar em contraditório, trabalhavam a terra antes mesmo dos primeiros raios matutinos. Enquanto os menores capinavam e plantavam, os maiores tratavam de tirar leite das parcas vacas, alimentar os porcos e as galinhas.
Lá pelas dez horas, a trupe se recolhia para o alpendre, onde almoçavam o que produziam. Se tivesse arroz, comiam arroz, se tivesse feijão, comiam feijão, se tivesse ovo, comiam ovo, se tivesse carne, comiam carne, se tivesse legume ou verdura, era o que comiam. Ninguém reclamava, pois a penitência aos domingos seria severa, já que entendiam que esconder a verdade era o mesmo que mentir.
Numa quarta-feira, quando o calor fazia o Cerrado querer rivalizar com o do Saara, Bide estava com os filhos roçando um terreno para fazer a plantação da época, o milho. Capina daqui, capina dali, mal dava tempo de tirar o chapéu para abanar o rosto ou enxugar o suor com o dorso da mão. De repente, o homem tombou sobre a terra vermelha.
— Pai, o sinhô tá bem?
— Pai!
— Pai!!
— Pai!!!
Nada do sujeito sequer mexer os olhos, que estavam revirados. Desesperados, os filhos carregaram o pai até debaixo do alpendre, onde o deitaram sobre a mesa. Sabina pegou um pano e uma bacia com água e começou a passar na testa do marido.
— Joaquim, corre lá no cumpadi Felismino!
E lá foi o primogênito até o sítio do vizinho, que era uma espécie de enfermeiro, médico, curandeiro e até veterinário da região. Já na porteira, o rapaz gritou para Felismino.
— Padinho, acuda aqui, traga injeção pra aplicar no pai, ele caiu lá na roça e parece dismaiado.
Não tardou, Felismino, munido com sua maleta de primeiros socorros, se fez presente diante do compadre Bide. O doutor mexeu daqui, mexeu dali, não sentiu nenhum dos sinais vitais, o que lhe deu certeza de que nada traria de volta o amigo. Mesmo assim, para ganhar tempo para contar a triste notícia para a família, resolveu despejar um pouco de mistura de ervas entre os lábios do defunto.
Aguardou mais alguns minutos, até que viu que não tinha escapatória. Cada um carrega sua cruz, e a dele, naquele momento, era revelar que Bide já não estava entre os vivos.
— Cumadi, meninos, o cumpadi foi se encontrar com Deus.
Foi aquele chororô geral. Momento de tanta emoção, comadre Sabina desmaiou. Até compadre Felismino, tipo acostumado às brutalidades da vida, ficou tocado ao ver o amigo de tantos anos sem vida, os filhos entregues ao desespero. Haja coração para também não sucumbir.
Joaquim, homem feito que era, logo montou no cavalo e saiu pela redondeza para avisar que o pai havia falecido. Momentos depois, a casa começou a encher de gente. As mulheres na cozinha preparavam a comida, enquanto os homens foram providenciar madeira para fazer o caixão. O morto jazia numa cama de solteiro, que fora colocada na sala.
Sabina, já recuperada do desmaio, chorava sem parar. Lamúrias pela dúvida do futuro.
— O que vou fazer agora sem o meu Bide? Tô sozinha com oito filhos pra criar.
Não faltaram palavras de conforto.
— Cumadi, graças a Deus, seus filhos tão tudo criado, não tem nenhuma criança mais.
— É verdade, cumadi Sabina. Seus filhos vão te ajudar, eles vão cuidar da lavoura, da criação.
Já era final de tarde quando o caixão ficou pronto, coberto por um tecido roxo brilhoso. Arrumaram o morto de tal maneira, que até a viúva pareceu satisfeita.
— Até que o meu Bide tá bonito dentro do caixão.
O corpo foi velado durante toda a noite, enquanto uma chuva torrencial caiu sobre a região.
— Tá vendo, cumadi Sabina? Até Deus tá chorando por causa do cumpadi.
Sabina, olhos marejados, concordava com a cabeça, enquanto se agarrava ao corpo do marido.
Já amanhecendo, a chuva parou. Os homens foram abrir a sepultura no cemitério da região, que ficava a duas léguas do sítio. Às onze horas, saiu o cortejo fúnebre. Sabina precisou ser puxada pelos filhos para apressar o passo, pois a última coisa que a mulher queria era enterrar seu amado Bide.
Já no cemitério, as mulheres fizeram as últimas rezas, enquanto o caixão foi depositado na cova. Sabina entrou em desespero e precisou ser segurada pelos presentes.
— Bide, meu amor, me leva com você! Não vou aguentar ficar aqui sem você! Me leva junto, por favor!
Nisso, a terra ao redor da sepultura, que estava molhada, afundou um pouco e lá foi a viúva cair em cima do caixão. Quando a mulher percebeu onde estava, entrou em desespero.
— Pelo amor de Deus, me tire daqui! Os meus filhos não podem ficar sem pai e sem mãe. Me tirem daqui! Cruz-credo!
Os homens, que estavam mais perto, pularam em cima do caixão, que deu um estalo. Tiraram a comadre Sabina lá de dentro. A viúva, assim que se viu fora da cova, nem esperou que enterrasse o marido. Saiu correndo para casa.
Aquele teatro virou piada por muitos quilômetros ao redor. Até os mais próximos sorriam às escondidas, apesar de compadecidos com a dor de Sabina. E, após quase um ano do enterro, compadre Felismino foi tomar café no sítio da viúva.
— E aí, cumadi, a senhora queria ir embora com o cumpadi Bide, mas na última hora desistiu.
— Cruz-credo, cumpadi! Naquela hora que caí naquela sepultura, me gelei toda, meus ossos endureceram. Aquilo num é lugar pra vivo, não.
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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’
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