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História de um amor que era para ser e não foi

Mal percebi como se passou um quarto de século desde aquelas deliciosas tardes. A ansiedade para chegar a hora em que me encontrava com ela superava qualquer outra ansiedade. E eu, um ansioso crônico até os dias de hoje, raramente tive o que fizesse meu coração pulsar daquele jeito.

Estava nos primeiros períodos da faculdade de Direito e fui aprovado para um concorrido estágio num órgão público. A bolsa ganha no estágio era diferenciada, oferecida por uma agência estatal, e superava em muito o salário-mínimo da época. O lugar era dos sonhos…

Próximo de onde morou Manuel Bandeira, e onde haviam filmado o melancólico filme sobre seu cotidiano nos anos 50, enquanto sua lendária voz recitava “Vou-me embora para Pasárgada”, e o grande bardo comia uma torrada, tomava uma xícara de leite, vestia-se para sair… A dois passos da Academia Brasileira de Letras, e eu já pensava em quantos eventos interessantes eu poderia frequentar depois de me desobrigar das funções burocráticas e encerrar o expediente. Na esquina havia um bar, o Villarino, no qual uma placa lembrava que a bossa-nova havia nascido ali. Não poderia estar melhor localizado. Cercado por história e poesia de todos os lados.

Pela primeira vez na vida sentia-me solto, independente, responsável por minhas atitudes. Era o menino que quase se fazia homem. Descobria a vida por atacado. E, nesse conjunto de eventos, ela apareceu e me deixou tonto com seus ombros, com seus cabelos curtos, com suas mãos, com suas roupas coloridas, com seu jeans rasgado, com uma flor tatuada que lhe subia pela nuca. Tinha dois ou três anos mais que eu, uns cinco centímetros a mais de altura, e isso me pareceu um abismo.

Eu, estagiário na área jurídica, andava de paletó e gravata todo dia. Ela não: vestia-se conforme gostava, ousada, provocativa e sempre elegante no seu estilo. Era estagiária da assessoria de imprensa. Ficava imaginando se, um dia, o advogado e a jornalista combinariam, se seriam um par, se levariam a vida juntos…

Fui impactado pela visão de Marília desde a primeira vez que a vi, desses impactos que a vida vai tirando da gente aos poucos. Nos encontrávamos sempre na lanchonete do órgão em que cumpríamos nossas funções, pelas 4 da tarde, quando havia um intervalo. Por vezes, o trabalho dela se encerrava mais cedo, de outras indo até mais tarde. O meu invariavelmente se findava pelas 7 horas. Mas a passada quase diária pela lanchonete do último andar era certa. E lá nos encontrávamos. Nem lembro direito como nos aproximamos, acho que foi uma coisa de grupo – o pessoal do Direito com o pessoal da imprensa, e logo nos misturamos e fomos conversando até que, auxiliado por um amigo que nunca mais voltei a ver depois daqueles tempos, puxei assunto com Marília.

Era algo vago. Literatura, acontecimentos do dia a dia, música. Descobri que ela gostava de Adriana Calcanhoto e Luiz Melodia. E eu, que recentemente havia descoberto os versos “ah, se eu fosse marinheiro…” queria fazer um porto seguro nos afetos de Marília. Navegar e voltar todo dia para seus braços morenos, para seu pescoço comprido, para suas mãos ágeis. Na sequência dos dias e conversas, logo fomos parar na poesia. E descobri que Marília era apaixonada por Augusto dos Anjos. Achava os poemas do “Eu” viscerais e transcendentes. E ficava impressionada como permaneciam após tantos anos da remota vida de seu autor. Também apreciava Drummond e Cecília, todos também na lista dos meus prediletos, mas sem nunca superarem Neruda, Schmidt e Vinicius.

Naquele tempo já ensaiava meus primeiros versos sérios, sempre objetivando conferir alguma força na imagem que criam, algo que norteia minha escrita até os dias de hoje. Mostrei-lhe alguns e ela os levou para ler. Ia dar uma opinião sincera, prometeu-me. Esperei dias, fingindo que esquecera, para não precisar cobrar o resultado. Até que veio, em forma de rasgados elogios. Achou um dos poemas parecido com Drummond, um que carrega o verso “lembro de tudo, volto pra casa e morro.” Não acreditei naquela época, e não acredito até hoje, mas fiquei todo orgulhoso da comparação feita por Marília. E eu seguia irremediavelmente perdido em seus olhos, em seu sorriso, na forma como ela via as coisas, com leveza e um sabor diferente. Sem saber, Marília era a minha primeira namorada. Na verdade, ela nunca soube.

Não tive coragem de me declarar para Marília. Achei-me tão distante dela, diferente de mim e, ao mesmo tempo, estranhamente igual. O meu formato de menino gordo, dentro do meu paletó e gravata, mais baixo que a mulher amada, deixavam-me acanhado e triste. E ela, com todo aquele sorriso, com todos aqueles braços, com aquela nuca e seu perfume… Era absolutamente inatingível. Aquele tempo não era como hoje, em que o celular e as redes sociais encurtam distâncias e ditam a frequência dos contatos. Assim, via Marília no trabalho, naqueles momentos de intervalo do expediente, e jamais tive a audácia de convidá-la ao Villarino.

Passaram-se os meses, o contrato de estágio expirou e nunca mais vi Marília. Não pude sequer guardar-lhe o sobrenome.

Umas semanas atrás eu nem me lembrava mais desta história quando, numa ida ao fórum central do Rio de Janeiro, encontrei-me com o antigo coordenador dos estagiários, hoje um colega nas lides jurídicas. Lembrávamos juntos aqueles tempos tão leves, tão doces, com uma gostosa saudade. Foi aí que ele comentou: na visão dos outros, Marília e eu não nos desgrudávamos nas tardes passadas na lanchonete, e parecíamos um casal. Confessei-lhe meu interesse por ela naquela época, mas a total falta de coragem de expor meus sentimentos.

Foi quando ele me contou que, num daqueles dias, ela revelou a ele estar muito angustiada porque estava apaixonada por mim, no entanto não sabia como se declarar porque eu era “o garoto todo certinho”, do Direito, poeta e, apesar de sempre atencioso e educado, era muito fechado em mim mesmo. Ela nunca achava uma brecha.

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