O urso humano*
História do homem que virou raiz da própria semente
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emHabitava o alto da montanha. Lá, avistava todo o vale. Tinha, no seu domínio, uma fonte de água cristalina, verde em abundância, e árvores que quase tocavam o céu.
Havia tempo que abandonara a cidade em busca de paz e harmonia com a natureza. Quase um eremita. Só não o era em função da necessidade de manter o contato pelo rádio e pelo escambo que fazia.
Acostumado a falar sozinho, era visto como uma pessoa insana – mas os animais o compreendiam.
Levantava-se com a aurora para caçar e o dia transcorria normalmente, nos seus ritmados afazeres.
O fato de morar isolado requeria força e planejamento.
Preparado para imprevistos, aprendeu a viver na natureza. Erro cometeu; sentiu na pele a importância de saber diferenciar ervas curativas, animais selvagens e peçonhentos e o frio que chegava sempre na mesma data, e exigia uma casa pronta para recebê-lo.
Homem forte, sofreu o calejar das mãos no uso do machado; prevendo o inverno, aprendeu a salgar carne e a costurar remendos e botões nas poucas roupas que mantinha.
Incrível como o corpo se molda ao calor e ao frio com o passar dos dias.
Acostumado à agitação do escritório, aonde a alucinação da Bolsa de Valores o conduziu até o abandono do dinheiro e a opção pelo retiro, não pensara que pudesse passar o resto da vida solitário.
Foram quarenta anos de gritos, ganhos fabulosos e perdas comprometidas com desgraças alheias.
Agora, respirava o ar silvestre, administrava o tempo pelos pássaros e cuidava de uma pequena criação. Acreditava estar no Éden, mesmo sem Eva. Afinal, cansara das mulheres interesseiras e vazias.
Bastava-se como se monge fosse. Toda a energia dedicada ao prazer do reinventar-se.
Apesar da mudança, havia momentos, principalmente à noite, quando o silêncio era companhia, que se lembrava da vida anterior. Não lastimava, sequer sentia saudade, mas a usava como referência.
Contudo, o tempo passara.
Agora, passados os oitenta, a força e a disposição de enfrentamento não eram mais as mesmas. A montanha exigia trabalho árduo e constante. Sabia que o rádio seria seu socorro, mas temia que a ajuda tardasse. Tinha aprendido a dar valor à vida.
Em uma manhã de nevoeiro, quando não se via o vale senão sob o olhar desfocado, viu da janela um velho urso que buscava comida, próximo ao cercado.
Ficou a observar seus movimentos. Pensava em como um animal tão temido tinha uma aparência tão doce. Saiu para espantá-lo; sabia do perigo e, mesmo assim, decidiu arriscar.
O urso foi mais corajoso e deixou suas marcas no corpo franzino. Refugiado em casa, permaneceu quieto até que o peludo se fosse.
Ao fechar a banda da janela, virou-se em direção à porta, na qual havia colado um espelho. Espantou-se! A imagem de um velho urso humano sobrevivera.
Oito décadas vividas. Metade delas desperdiçada.
Hoje, mais animal do que homem, por instinto, sabe quando será atacado. Percebendo o fim próximo, organiza a casa, entrega a criação ao verde, desejando-lhe sorte; aposenta o machado. Prepara a cama e acende o fogo.
Pela última vez, usa o rádio. Seu último desejo é revelado – pede para ser plantado sob uma frondosa árvore e ser alimento de sua raiz. Assim foi encontrado.
O urso humano virou semente.
……….
O URSO HUMANO, de Hannah Carpeso, foi publicado em ESPALHANDO CONTOS, livro da Costelas Felinas Editora.