Caía a tarde em Buenos Aires, não de um momento para outro, como desaba um viaduto, e sim pouco a pouco, como costumam cair as tardes, quando ela o avistou. Não trajava luto, que nem o bêbado da bela composição de João Bosco e Aldir Blanc, o fundo musical deste episódio está mais para Balada para un loco, de Astor Piazzolla e Horacio Ferrer, do que para O bêbado e a equilibrista, mas Carlitos era uma espécie de denominador comum aos dois personagens. O bêbado brasileiro usava chapéu-coco, igualzinho ao do vagabundo do cinema; o argentino portava, sorridente, meio melão na cabeça, à guisa de.
Como informa a balada, ele estava mais para um louco, mas um louco bonzinho, incapaz de fazer mal a alguém – o que os argentinos chamam de loco berretín. Um louco com quem flertam os manequins das vitrines a quem os semáforos saúdam com luzes azuis. Aproximou-se dela, tirou o melão para cumprimentá-la e falou:
– Estás tão triste…Vem dançar comigo.
Como por magia, ouviu-se uma valsa, e os dois dançaram pela rua. Ele prosseguiu:
– Quero revelar o que escondes no peito. Como um acrobata insano, vou pular no abismo de teu decote, até sentir que enlouqueci teu coração de liberdade.
Comovida, ela o olhou e sorriu, sem palavras. Podia sentir a magia daquele momento. Ele continuou:
– Um sorriso? Melhor. Agora vem voar.
Segurando mais forte a mão dela, levou-a consigo para o céu de Buenos Aires e continuaram a dançar. Era tempo de mais uma lição:
– Sei que sou louco, minha querida, mas foram os loucos que inventaram o amor. Ame-me assim, loucamente, suba nessa ternura louca que existe em mim, descerra os amores que vamos experimentar, inventar. A loucura mágica, total, de reviver.
Muito depois, aos poucos, conduziu-a de volta ao solo.
– Está na hora de partir, minha querida. Recuperaste um pouco de tua loucura, que bom! Agora vou regressar a meu ninho de pardal, diminuir de tamanho e repousar, é dele que observo minha cidade de Buenos Aires e identifico quem necessita de uma pitada de loucura – e beijou-a.
– Partir? Mas esperava que… desejava…
Ele cortou-lhe com um segundo beijo as palavras balbuciadas e voltou a voar, dessa vez sozinho.
Loucos são românticos, quixotescos, moças salvas da tristeza por uma pitada de insanidade em geral são terra a terra, sanchopancescas. Ela estava babando de desejo, morrendo de vontade de comê-lo. A magia continuava forte naquele início de noite, ela transformou-se em um falcão e voou até o ninho de pardal onde ele se abrigava, pequenininho.
A ideia era recuperar a forma e a estatura humanas para uma tórrida noite de amor nas alturas, mas o instinto de falcão foi mais forte e a ave de rapina o devorou.