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Histórias de assombração de Lúcio, mais velho, se arrastam até adolescência

Hoje moro em um confortável apartamento, cujo refrescante piso de porcelanato me ajuda a suportar o calor infernal. Além do mais, é mais fácil manter o chão limpo, já que basta passar um pano úmido para ninguém desconfiar que não posso mais me dar ao luxo de pagar uma faxineira. No máximo, uma diarista uma ou duas vezes por mês, dependendo de outros gastos, a maioria não supérflua para a minha idade.

Na minha infância, morava numa casa com piso de tacos. Mamãe possuía até uma enceradeira, que se tornou peça de museu nos tempos de hoje. Mas não estou aqui para rememorar aqueles idos por conta desse eletrodoméstico barulhento, que, ainda por cima, causava interferência na televisão, cuja programação não conhecia as cores do arco-íris.

Justamente devido aos tacos, que eram feitos de madeira como todos os demais, o nosso lar, aos ouvidos mais atentos, era repleto de estalidos. Esse fenômeno, só soube anos mais tarde numa aula de física, era provocado pela dilatação e pela retração da madeira por conta das variações de temperatura. Tal revelação, aliás, pelo menos no meu caso, foi mais traumática do que quando soube que Papai Noel não existe.

Não sei se o Lúcio, meu irmão, que é dois anos mais velho, estava ciente desse fato físico. Seja como for, enquanto costumávamos ficar sentados no tapete da sala, ele adorava criar histórias de fantasmas. Era assustador, mas divertido.

Vez ou outra, Lúcio fazia pausas dramáticas, como se querendo me provocar mais calafrios. Invariavelmente, eu perguntava se ele havia visto alguma assombração. Meu irmão arregalava aqueles olhos escuros enormes, colocava as mãos sobre os lábios e me abraçava, fingindo querer me proteger. Só descobri anos mais tarde, quando, nunca dessas ocasiões, tive coragem de abrir os olhos e, então, percebi, através do reflexo do vidro da cristaleira, o sorriso de satisfação nos seus lábios cínicos.

Apesar de tamanha revelação ter me libertado de tantos medos, nunca mencionei minha descoberta para Lúcio, isto é, até ontem à noite, quando houve mais uma daquelas chatas reuniões familiares. Não me interprete mal, não sou tão ranzinza assim. Sem contar que, de vez em quando, consigo arrancar algumas boas gargalhadas do meu querido irmão mais velho.

Pois bem, lá estávamos reunidos na casa dos nossos pais, quando o meu irmão, talvez tentando relembrar os velhos tempos, se sentou no tapete da sala e me puxou pelo braço. Que nem um devoto caçula, obedeci e me postei ao seu lado. Ele me abraçou por um instante, até que começou a ensaiar mais uma daquelas histórias de terror. Fingi o pavor que há muito deixou de me acompanhar, quando ele me abraçou novamente. Notei o mesmo sorriso cínico refletido na cristaleira. No entanto, dessa vez, nossos olhos se cruzaram.

— Desde quando você sabe, Marcos?

— Já faz um tempinho. Creio que eu devia ter uns oito ou nove anos.

— Que nada! Nessa época você era um boboca.

Lúcio tem razão. Naquela época eu era mesmo um boboca. Só descobri quando eu já estava entrando na adolescência.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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