É domingo
‘Hoje, às 17 horas (ou hxxx rxxxxxx) começa o resto de nossas vidas’
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emHá, dentro, um círculo vicioso de perdas.
Não sabia que a vida era perder amigos; e se não há outra solução, então passemos o pente fino nos cabelos dourados da razão: expelindo estrelas como piolhos.
Eu segurei tua mão assaz, suspensa no mar, toquei teus pés com meus olhos castanhos: margaridas despetaladas cobriam o chão de relva serenada. Há, fora, o que possuímos, mas que não podemos tocar — tal inefável —; porém, eu a toco, com o vapor emudecido que salta para fora da minha boca: é frio.
O amor feriu com seus dentes caninos a parte superior dos meus lábios.
O amor: sendo atemporal, luminescente, faz o coração meu e teu bater exatamente no mesmo compasso.
Simbióticas trevas da noite, eu queria renascer em teu útero; adormecer, pétala por pétala, na vastidão do teu pulso rasgado pelas lâminas que afligiram afoitas a tua pele.
O amor: fina pele transparente. O amor: luz que guia meus passos. O amor: roupas para lavar — “a janta já está pronta?”. Siriris pousando na boca do crepúsculo. O amor: — “ já fizeste o café?”, — “sim, e as torradas estão no armário de baixo” —. Sonho? Sonho.
Tua boca, pérola parda cerrada.
O amor: teu lábio superior sujo de margarina.
— “Como foi no trabalho?”
Massageio teus pés e colocamos para assistir na televisão um filme de Tarkovsky.
Tu adormeces, eu sorrio olhando para ti. Sei que é um sonho.
Sei que logo irei acordar. Mas por favor, deixem meu destino ser outro, deixem ela ficar.
O ar quente de outono cortava a brisa que perpassava a janela e a porta.
O amor: ar quente, sonho, sono volátil; vigília.
O amor: soco seco na boca do estômago, que desponta no horizonte, tal sol.
O amor: “— vou tomar banho, querido” —. “— A toalha está no varal“.
O amor: imperceptível, detalhista, fulgura. O aroma do fim-de-tarde róseo, céu escarlate. E então percebo, não queria estar em nenhum outro lugar, havia chegado.
Queria que a vida me deixasse ser feliz por um instante, pois, a cada minuto que passa, o tempo vai se calando, imbuindo significados, como se soubesse cavalgar silêncios, na tua boca suja de margarina, às 17h de um domingo, onde começa o resto de nossas vidas.