Curta nossa página


Evolução babilônica

Homem evoluído usa smartphone, mas não é estúpido e nem intolerante

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Embora pouco afeito às novidades do mundo da modernidade tecnológica, reajo com indignação quando alguém insinua que perdi boa parte do meu tempo tentando aprender a mexer no cérebro eletrônico. Para mim, a idade é apenas um número. Ou seja, a gente nunca é velho demais para se reinventar. Sou mais antigo, mas, fora a tal da tecnologia, penso e ajo como homem moderno. Por isso, faz anos bani definitivamente do meu dia a dia o cinto, o pijama, as pantufas, o guarda-chuva, a gravata borboleta e o suspensório.

Na sequência, aboli a pomada Minâncora, a Cibalena, o Alka seltzer, o Vick Vaporub e o Rum Creosotado. Costume antigo e que ainda não consegui expurgar do cotidiano de um macho alfa é o uso de cuecas com meu nome e telefone bordados do lado oposto do João Bobo. Também mantenho aceso o gentílico paugrandense, uma decorrência da apagada currutela chamada Pau Grande. Durante a alimentação da semana, baseada em rabada, panelada, buchada e Maria Isabel, não abro mão de abrir o apetite com uma beiçada na Cura Veado, de longe a melhor pinga que os alambiques mineiros já produziram.

Do Centro-Oeste, a Amansa Corno é intragável. Importada do Paraguai, a tal da Uátizap não desce nem quando o santo ajuda. Como os fins de semana foram feitos para espritar com abundância, me sento à mesa e, na ausência de uma tubaína de laranja, abro uma Caracu bem gelada para degustar meu tira-gosto preferido: lascas de peixes bem fritinhas. Gosto muito de uma cavala, mas minha preferência é pelos pescados da Amazônia, aqueles com couro e com nomes baseados no caneco do início, do meio e até o fim.

No sábado e no domingo, comer um deles é sagrado. Em minha geladeira não faltam filés, postas ou iscas de Baiacu, Pacu, Pirarucu, Carapicu, Aracu, Curimatã, Tucunaré, Cascudo e Jacundá. Sei que é caneco demais, mas, às vezes, incluo no cardápio festivo uma Surucucu do papo amarelo. O que não como nem que a vaca tussa são as piranhas de língua serrada e dentes afiados. Também não são do meu agrado os linguados. Não sei por que, mas é lembrar deles e me imaginar em uma tresloucada situação de fio terra.

Tô fora! Deus me livre e guarde! Que o bacamarte de cabeça dourada do meu avô Aristarco Pederneira sempre me salve de enrascadas desse tipo. Aliás, não é demais lembrar que o velho era muito menos analógico do que eu. A prova disso foi a rapidez utilizada por ele para responder a uma simplória, inocente e armada indagação. Do alto de minha ignorância pai-d’égua, achei que podia confundi-lo. Acabei confuso e preocupado com sua sagacidade. De chofre e com uma pontada de sacanagem, perguntei ao vô o que era calcinha. A resposta dispensa comentários: “É um aplicativo que todos os homens querem baixar”.

Acostumado a bloquear o Whatsapp da minha época com um cadeado e, quando muito, a usar um telefone sem fio no máximo a dez metros do interlocutor, hoje me sinto vivendo em uma grande Babilônia. É inegável que a evolução foi benéfica para o mundo. Entretanto, acho que a estupidez e a intolerância humana não fazem parte do que chamam evolução. Se fizerem, nunca se fez tão necessária uma involução. É por isso que, apesar de criticada por aqueles que só evoluíram com o fígado, minha tese de ontem é a mesma de hoje e será sempre a de amanhã: O homem evoluído nada tem a ver com smartphones.

…………………..

*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.