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Hora de quebrar sigilos da alma e do coração de Bolsonaro

Desconheço a autoria, mas o velho e sábio provérbio “Quem conta um conto aumenta um ponto” é atualíssimo e cada vez mais certeiro. O problema são os exageros e a conotação, que nem sempre é favorável a quem produz ou aumenta a história. É o caso do cidadão Jair Bolsonaro, o nosso (meu não) ex-presidente impoluto, sério, terrivelmente honesto, evangélico de pijama, coturno e baioneta e, agora, colecionador de pedras preciosas e relógios Rolex que não são seus. A bem da verdade, temos de acrescentar que os contos contados por sua (ex) celência são fábulas para bebê dormir de tristeza ou boi mugir de raiva antes mesmo da degola. Ou seja, a esfarrapada defesa – ou seriam desculpas – não passa da página 2. Tudo a ver com a dualidade do ser humano narrada por Milan Kundera na célebre obra A insustentável leveza do ser.

Após quatro anos de paralisação socioeconômica, de letargia política, de abestalhado afastamento internacional e da conspiração pública e amadora contra a democracia, o senhor do arbítrio passará para a história como aquele que foi sem nunca ter sido. Aliás, alcançou esse rótulo somente porque não deixaram que ele fosse o que pensou ser. Foi derrotado por Luiz Inácio, perdeu boa parte de seu capital político, jogou o suposto carisma na lata do lixo, acabou com a vida de milhares de seguidores golpistas, envolveu em sua trama diabólica militares que, loucos por um segundo, terceiro ou quarto contracheque, embarcaram em uma canoa furada e, pior de tudo, encerrou prematuramente a carreira de tirano ao prometer a um bando de patriotas insanos o que sabia não poder cumprir: o golpe.

Por razões óbvias, os parlamentares que representam o clã avaliam a sucessão de escândalos surgidos antes, durante e depois da mal sucedida aventura presidencial como tentativa “tresloucada” para atingir o ex-mito. Ironicamente, além de deliberadamente esquecerem que ninguém está acima da lei, os ditos cujos são incapazes de lembrar que, se alguém pensou em ser inimigo de alguém, esse alguém foi o sujeito direto desta narrativa. Será que algum brasileiro com a mente em dia acha realmente que Jair Messias sofre perseguição do governo Lula, da mídia, da população que ainda ocupa o cérebro com coisas mais interessantes ou do mundo? Será que as histórias das joias das arábias e agora as pedras preciosas são invenções dos tais perseguidores?

Existem e-mails com orientações para que dois pacotes contendo pedras preciosas presenteadas ao ex-presidente e a ex-primeira-dama não fossem cadastrados e “entregues em mão” ao ex-ajudante de ordens Mauro Cid. Portanto, se houver, a “perseguição” pode ser justificada na falta de explicações plausíveis e com um mínimo de coerência acerca dos bens recebidos para a Presidência da República e não declarados no momento correto. Acusar de leviandade a deputada Jandira Feghali, autora da denúncia, é como tentar enfiar o pescoço no buraco. Se o presente era lícito, por que não o declararam à Receita Federal? Se eram pedras semipreciosas, por que não abriram a caixa antes do estouro da boiada? E por que a troca de orientações entre os ajudantes de ordem para que não houvesse o cadastro das peças?

Perdoem-me a “perseguição”, mas me parecem histórias para seguidores sem tutano. É a mais absoluta inversão de valores. Se querem convencer a sociedade de que o arrependimento pelos malfeitos é verdadeiro, comecem pela abertura do sigilo da alma e do coração do ex-mandatário e de todos os que, a seu pedido, tentaram jogar o Brasil na cratera localizada no fundo do buraco negro da civilização. Enrolados no emaranhado de inquéritos criminais, os principais brucutus da extrema-direita, incluindo o viking da periferia, não dormem sem destilar ódio no sentido do atual ocupante do Palácio do Planalto e, por extensão, na direção daqueles que, em outubro passado, prefeririam a democracia plena. Para aqueles que conseguiram chegar à página 3, o enredo não muda.

Luiz Inácio e seus eleitores são comunistas, ladrões, desordeiros e defensores dos corruptos. Acima do bem, do mal e da perversidade, a turma do golpismo não admite a conivência com o despotismo e com a tirania. Por isso, Bolsonaro será eternamente uma vítima da maledicência do povo cujo erro foi – e é – a defesa do Brasil pacificado. Vale lembrar que nunca neste país alguém estimulou ataques ou ameaçou dar um tiro no Jair. Muito pelo contrário. A facada destrambelhada que o diga. Lula perdeu, foi preso e nenhum “esquerdopata” quebrou nada da República. E os irracionais são os da esquerda. Mais uma vez valho-me dos valores invertidos para lembrar que conto aumentado justifica o endurecimento da lei. E a lei dura parece ser a única forma de entendimento do bolsonarismo arcaico, tóxico, agonizante e sem cura. Voltem para o armário e, se puderem, aprendam que pedra preciosa não é bijuteria, muito menos que o conto do mito seja o do vigário.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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