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Palavras amigas

Hora de usar vocabulário contemporâneo e se livrar da milícia furduncista

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Fernando gostava de palavras. E de diversas línguas. Amava, por exemplo, o francês “sanglot”, mesmo sem os violons d’automne do lindo poema de Verlaine. Era mais convulsivo, mais visceral, menos sincopado que um soluço luso-brasileiro.

Mas sua língua natal era o português e, claro, suas melhores amigas brotaram junto à última flor do Lácio. Talvez sua preferida fosse “enleio”. Era tímida, capaz de passar horas junto a ele em silêncio, sorrindo às vezes e escondendo meio envergonhada o rostinho. Já com outro termo belo e apreciado, “enlevo”, o clima sugerido em “enleio” era escancarado a ponto de deixá-lo meio sem graça. “Enlevo” não tirava os olhos dele e dava longos suspiros apaixonados.

Ocasionalmente, Fernando se perguntava por que “enleio” o seduzia. Chegou a pensar que fosse pela soma harmoniosa de quatro vogais e duas consoantes – mas aí lembrou de “oitiva”, que considerava muito feia e tinha quase a mesma estrutura.

Durante a quarentena, ele vinha recebendo a visita de vocábulos de origem africana. Apreciava a sonoridade deles, a começar por “bunda” – redonda e gostosa de pronunciar, quase derretia na boca. Mais ainda, elas remetiam a sua infância. Quantas vezes não ouvira a avó dizer: “Moleque, passa na quitanda e compra um quilo de batata”? Só que o moleque havia muito desaparecera, assim como a avozinha, e quitandas praticamente não existiam mais; parafraseando Drummond, eram apenas um retrato na parede, e doía dentro do peito.

Outra voz africana que o encantava era “cafofo”. Originalmente, significava lugar feio, detonado; mas a fofura das duas últimas sílabas provavelmente contribuiu para difundir a acepção de lugarzinho aconchegante, acolhedor.

Mas havia um vocábulo da mesma origem que o incomodava: “furdúncio”, que significa desordem. Não era moralismo, ele gostava de seus vários sinônimos, bagunça, zoeira e, em especial, de fuzuê, elegante como um capoeirista; mas, por alguma razão, furdúncio não descia, “Tem consoantes demais, vai ver é por isso”, costumava dizer para si mesmo.

Só que as paredes têm ouvidos. E as palavras também.

Certa noite, Fernando recebeu uma delegação de locuções luso-africanas nada amigáveis. Olharam feio para ele e soltaram os cachorros em brasílio-africanês castiço:

-Ô maluco, não gosta de furdúncio? Vamos armar a maior fuzarca, detonar teu muquifo, te deixar banguela, te dar um pé na bunda e te enfiar um bitelo! Tá avisado, babaca!

E foram embora. Desde esse dia, Fernando vem se esquivando das visitas das palavras amigas, não quer que elas sejam vítimas inocentes do anunciado ataque da milícia furduncista. Reconhecidamente tímido, o enleio só comparece raras vezes e se divide entre miradas furtivas, sorrisos meio envergonhados para ele e olhares para o relógio na parede, querendo ir embora logo. Somente o enlevo, inabalável, continua a se derreter em sua companhia, mirando-o embevecido.

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