Nem só Jeannie era um gênio
Hugo Montenegro, de trilhas sonoras hollywoodianas, ganha espaço no Méier

Nasci em 1979. Desde criança, tive um gosto musical diferente. Lembro-me de um aniversário, de 6 ou 7 anos, em que os discos mais vendidos do momento eram da Xuxa e do Trem da Alegria, e eu fiz questão de que meus amigos ouvissem uma então recente descoberta musical que fizera: Secos & Molhados. Minha irmã e uma vizinha me demoveram da ideia, e acabaram no toca-discos LP’s mais condizentes com a faixa etária da maioria dos convidados. Esta vizinha, que os emprestara, com pena de mim, deu-me o disco do Trem da Alegria, talvez pensando que eu não tivera acesso à música infantil. Lembro que me interessei muito por ele – trazia algumas faixas com a base instrumental das músicas, para as crianças cantarem junto. Foram as que mais me chamaram a atenção, pois já reparava nos arranjos.
Creio que, se eu fosse conduzido para a música, aprenderia bastante. Foi depois de homem feito que tomei a iniciativa de estudar alguma coisa na área. Teoria musical, instrumentos de sopro, piano, bateria – já passei por tudo isso. Adoro descobrir coisas que eu não sei. Sou fascinado pela leitura fluente de partituras, algo que eu não consigo fazer, mas ao menos olho para uma pauta e não me sinto mais um completo analfabeto naqueles símbolos miúdos representando claves, armaduras, colcheias, fusas, semínimas e pausas.
Quanto aos músicos preferidos, o norte-americano Ray Conniff (1916-2002) continua em primeiro lugar no meu coração. Ainda escreverei a meus leitores sobre minha admiração pelo saudoso maestro que fundia vozes humanas, metais e palhetas, sempre com um impecável senso de ritmo e respeito às melodias, de quem fui até membro do fã clube internacional. Mas, junto a ele, outros dois compõem uma tríade sagrada na trilha sonora da minha vida: os maestros Percy Faith (1908-1976) e Hugo Montenegro (1925-1981).
É sobre o último que queria falar hoje, pois um recente fato ligado à sua história me fez refletir acerca de como o tempo pode tentar apagar um legado e, ao mesmo tempo, lançar luz nova sobre a obra de uma pessoa.
Hugo Mario Montenegro nasceu em Nova Iorque, oriundo de uma família italiana. Aprendeu música desde cedo e, ao alistar-se na Marinha, em plena 2.ª Guerra Mundial, foi logo incumbido de escrever arranjos para a orquestra que entretinha os soldados instalados numa grande base naval antes e depois dos treinamentos. Saindo da força, foi arranjador de outros músicos e pequenos selos discográficos e, em 1956, lançou seu primeiro disco solo. Ao longo da carreira, não foi um grande vendedor de discos, embora haja conquistado um lugar como autor de trilhas sonoras para séries e programas de televisão.
Contratado da RCA, nem teria seu contrato renovado em 1967 quando, estourando com a versão que gravara em compacto do tema do filme de faroeste italiano “O Bom, o Mau e o Feio”, de Ennio Morriconi, vendeu mais de um milhão de cópias e deu fôlego novo à sua carreira. Em 1972, a pedido da gravadora, começou a pesquisar como o cérebro humano entendia espacialmente o som reproduzido e, de forma pioneira, foi o primeiro músico da RCA a lançar um disco quadrafônico, em que quatro canais de áudio separados são reproduzidos. Continuou gravando regularmente até 1976 quando, sofrendo de um severo enfisema pulmonar, precisou parar de trabalhar, morrendo alguns anos depois, no auge de seus 55, na casa em que residia em Palm Springs, Califórnia.
Talvez você que me lê já deva ter ouvido ao menos uma vez uma composição de Hugo Montenegro, mesmo sem saber. É dele, por exemplo, o famoso tema da série de TV “Jeannie é um Gênio”, que começou a ser usado a partir da segunda temporada. O filme de Elvis Presley intitulado “Charro”, o único em que Elvis é apenas ator, pois não se trata de um musical, tem toda a música descritiva e o arranjo do tema principal sob o crédito de Hugo Montenegro. O próprio rei do rock fez questão de que Hugo, um colega de gravadora, emprestasse seu talento ao longa-metragem. O último filme de Sharon Tate, atriz que teria trágico desfecho, também deve a Hugo a trilha sonora, bem como o antológico filme “Lady In Cement”, estrelado por Frank Sinatra, em que ele, meio canastrão, deu vida ao detetive Tony Rome.
Comecei a gostar de Hugo ali pelos 7, 8 anos de idade, graças a um disco de 1969 intitulado “Good Vibrations”, encontrado ao acaso entre outros LP’s na minha casa, que meu pai guardava desde que fora dono do restaurante em um clube na beira da praia no Rio de Janeiro. Ele recebia esses discos como promoção e, quando deixou de tocar o negócio, levou-os para casa, onde ficaram guardados por anos até que minha curiosidade de menino os fosse fuçar. Ficava impressionado como a capa, roxa e com um letreiro meio psicodélico, parecia ganhar vida quando a girávamos levemente e as letras coloridas que formavam seu título pareciam rodar. Toquei o disco numa antiga vitrolinha e me apaixonei à primeira audição. Jamais deixei de ouvi-lo e, mais tarde, pesquisar sobre ele e expandir minha coleção com outras gravações. Hoje, tenho praticamente todos os discos que ele lançou, alguns bem raros no Brasil.
Chegou a meu conhecimento que, recentemente, uma pequena loja nos Estados Unidos, especializada em compra e venda de mercadorias ligadas a artistas e músicos em geral, arrematou, num leilão promovido por um depósito, uma enorme quantidade de caixas com fitas, discos, partituras, instrumentos musicais, fotos e até documentos pessoais de um artista que não conheciam. Pesquisando um pouco mais a fundo, tiveram contato com a história de Hugo Montenegro. Acabaram salvando de ir para o lixo, por falta de pagamento da armazenagem, um importantíssimo acervo do artista, ali deixado por sua segunda esposa após a morte dele. Por alguma razão que não conseguiram descobrir, a dona do acervo parou de pagar a taxa. Eles arremataram tudo por uma ninharia e, aos poucos, estão vendendo este acervo em lotes.
Eu já estive dando uma boa olhada no conteúdo. Fiquei apaixonado pelas fotos, algumas de Hugo no ambiente doméstico, pela batuta original do maestro, um raro bandolim italiano, contratos, partituras de discos inteiros, a carteirinha dele da marinha, dentre muitas outras coisas.
Ao mesmo tempo que me deixou meio entristecido o fato desse importante acervo estar totalmente esquecido num remoto depósito e correr o risco de ser completamente dissipado em pequenas porções, fiquei feliz pois, em contato com o pessoal da loja, fui informado de que houve bastante interesse nos itens, e fãs vinham pagando muito bem por eles e arrematando vários objetos.
Ainda assim, espanta-me que um artista tão importante, pioneiro e revolucionário, seja relegado a esse oblívio, a ponto de vários itens, que devem ter-lhe sido caros em vida, estarem sendo espalhados pelo mundo, indo parar nas mãos de pessoas desconhecidas.
Ao menos os que estão comprando essas coisas são verdadeiramente fãs, e sabem de quem se trata Mr. Montenegro.
Eu, como legítimo admirador que também sou, não poderia ficar de fora. Apesar das condições desfavoráveis no câmbio, arrematei duas lindas fotos originais dele no estúdio, durante uma gravação, e um cheque assinado pelo maestro, pago ao sindicato dos músicos da região em que residia. Brevemente, estarão devidamente emolduradas na parede do meu escritório, lembrando-me daquele que, ademais, eu jamais esqueceria.
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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com
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Nota da Redação: Nós, que fazemos Notibras, costumamos nos referir ao Dan como ‘O Bruxo do Méier’, onde ele reside
